BRASIL.ÉTICA E MORAL, DENTRO E FORA DAS CELAS
por Augusto Boal
Em 2002, o Centro do Teatro do Oprimido trabalhou em várias
penitenciárias de São Paulo, com financiamento estrangeiro.
Em 2003, este Projeto foi estendido a mais cinco estados brasileiros:
Rio, Minas Gerais, Pernambuco, Rondônia e Brasília.
Além disso, no Rio de Janeiro começamos a trabalhar
com os assim chamados jovens em conflito com a lei. Estas considerações
são a base teórica do trabalho, totalmente realizado
pelos Curingas do CTO-Rio.
Uma coisa é escrever uma bela teoria; outra, bem diferente,
pô-la em prática. No primeiro capítulo deste
livro, expus a teoria do que pretendíamos fazer, e suas razões.
Onde? Inicialmente, no Brasil, hoje.
Já não viuvemos ontem, e temos diante de nós
todas as possibilidades de um amanhã incerto. Mais do que
nunca, hoje nos faz temer o futuro e nos obriga e estimula a inventar
esse amanhã, bem diferente daquele que se prenuncia.
Diante das autoridades estaduais e nacionais, diante dos agentes
penitenciários e outros convidados, li a fala que se segue
com a intenção de ser totalmente honesto sobre nossas
intenções, claro sobre nossas posições,
e esperançoso sobre o trabalho que naquele dia se iniciava.
Era preciso explicar a essas pessoas que nosso trabalho não
seria mero passatempo, nem pretendíamos explodir as estruturas
dos presídios. Não queríamos assustá-los...
nem tranqüilizá-los.
Todos os Curingas do Centro do Teatro do Oprimido, os verdadeiros
realizadores do Projeto, estavam presentes: Bárbara Santos,
Helen Sarapeck, Claudete Felix, Geo Britto, Olivar Bendelak, Cláudia
Simone, Luiz Vaz. Foram eles, e só eles, que assumiram todos
os riscos da experiência.
Eis o texto:
Poucas vezes, na história da Humanidade, foi tão fácil
ver as intenções secretas por trás das palavras
vazias, na transparência ingênua e ameaçadora
do discurso oficial. No mundo, hoje, vale a força: quem pode,
manda - o jantar e a razão estão servidos. A ONU perdeu
o seu sentido moderador e decisório, com o qual foi criada,
e se converteu numa bela tribuna de retórica ornamental.
Cada nação faz o que quer... se, para isso, tiver
tanques e bombas - e muitas. Com terrorismo, combate-se o terrorismo;
com fanatismo bélico, o fanatismo religioso.
Temos que fechar os olhos se não quisermos ver que o mundo
supera - em terror e ameaças - as angústias dos nossos
pesadelos infantis. Hoje, fico feliz quando tenho um pesadelo, porque
me alivia e reconforta do que vejo no mundo, quando em vigília.
Nunca tanto desejei ter pesadelos, como desejo agora. Ao sono, peço
pesadelos, como o verde pede a chuva: preciso deles para o meu equilíbrio
psicológico, minha saúde mental, para continuar a
ter alguma esperança de, um dia, acordar.
Precisamos da suavidade e da segurança que nos davam os dragontinos
animais ferozes que se escondiam embaixo da nossa cama e nos estrangulavam
com suave sadismo, sorrindo chamas; saudosos fantasmas estrábicos
que se escondiam dentro dos armários, no sótão
e no porão, e nos sufocavam, sensuais; bruxas, voando em
vassouras de piaçava, pisando nuvens: saudosos pesadelos!
Após o turbulento sono, nós... acordávamos.
Hoje, quem nos acordará dos pesadelos da nossa vigília?
Nos jornais, lemos que a água potável está
se acabando, vamos todos morrer de sede... sem tempo de tomar banho;
o buraco no ozônio se abre a olhos cegos, e vai nos queimar
como torresmos; El Niño promete soprar devastadores tufões,
tornados e furacões, se não assinarmos o protocolo
de Kyoto, que só quem não polui, assina; o preço
do petróleo voltará a baixar, mas é necessário
que o Iraque seja destruído - eis a solução
das nações empenhadas em vender bens e serviços
para a reconstrução da Babilônia do Rei Hamurabi
que, por ironia, foi o inventor do Direito, há quase quatro
mil anos. Rei no país que inventou a roda.
Uma raça que não ame outra raça, mesmo que
sejam as duas a mesma raça; um deus que não ame outro
deus, mesmo sendo ambos o mesmo deus; uma nação que
não ame outra nação, mesmo sendo ambas o mesmo
Estado - todos têm o direito de trucidar seu semelhante: sendo
fortes bastante, podem destruir aquele que poderia, um dia, ser
o fraterno amigo.
Esta é a Moral do mundo.
Mimético, o Brasil, até 2002, sempre foi a reboque.
Endemias atacam 20% da população; o desemprego anestesia
um terço dos braços ativos; falta saúde, dizimando
o corpo; educação, embrutecendo o espírito.
O faminto não pode tocar piano, ver a beleza de uma paisagem;
não pode pensar, nem namorar: o faminto quer pão!
Não existe Ética verdadeira na Moral mentirosa: nem
no Brasil, nem no mundo. Nada do que se fala é verdade, e
a verdade não se fala. Vivemos sob a égide de um Código
Moral Polimorfo de Geometria Variável. Uma sociedade sem
Ética é gera delinqüentes porque ela própria
delinqüe.
No filme Cidade de Deus: uma criança de 12 anos sabe o que
quer: - "Quero roubar, matar, cheirar, porque quero ser respeitado!"
Como se formou esse Código de Ética com valores tão
coerentes, lógicos... e monstruosos?
Quando uma sociedade se desintegra, os valores nos quais se funda
se esvaziam e fragmentam. Suas instituições permanecem
aparentes, porém já não cumprem as funções
que lhes deram origem.
Exemplo: os impostos eram uma forma democrática de obrigar
os ricos a pagar pelas necessidades básicas dos pobres -
este o conceito de Sociedade, todos sócios; no Brasil, quem
paga mais impostos são os pobres que deveriam ser os mais
beneficiados. Nos Estados Unidos, o governo diminui os impostos
dos ricos e reduz as verbas de saúde e educação
dos pobres.
Impostos foram esvaziados do seu conteúdo. Nós nos
enganamos usando palavras em suas acepções antigas
que camuflam realidades presentes.
Família: figuras como a paterna, materna e fraterna deveriam
ser continentes protetores. Nas camadas mais pobres da população,
vemos famílias esvaziadas do seu conteúdo essencial:
o pai - alcoólico ou desempregado - manda o filho roubar
e exige a sua parte; o padrasto, tio, ou pai, estupra meninas na
puberdade. A mãe se mata de trabalho, dentro e fora de casa.
Os irmãos estão na rua e as irmãs em pardieiros.
As, assim chamadas, famílias, expulsam os filhos daquele
conjunto humano que deveria ser abrigo e núcleo formador
do seu caráter.
Oitenta por cento das crianças pobres internadas no DEGASE
tiveram escola, porém esvaziada da sua finalidade pedagógica.
O professor, que recebe dez vezes menos do necessário para
uma vida de estudo e dedicação, deveria ser o princípio
de autoridade, pai e mãe; horários de trabalho, recreio,
livros e cadernos, seriam uma estrutura.
Nossas escolas impõem um saber dogmático, pré-paulofreiriano,
onde o saber do aluno, que tem origem na sua vida real e concreta,
não é levado a sério; escolas que, desde a
primeira série, designam os alunos que serão salvos
e condena os perdidos: classes 101, 102, 103... cada qual com seu
destino.
Aquela criança na tela, cravada na minha memória,
não tinha território nem lar, estruturas em nenhum
lugar. Onde buscar integração? Nas igrejas mediáticas?
Como? Fazem milagres, curam tudo, até caxumba as quintas,
depois do almoço, e Aids, aos sábados pela manhã,
no auditório lotado, mas... exigem o dízimo a quem
não tem o cêntimo. Futebol? Como, se só são
respeitados se forem para a Europa? Escola de Samba? Dura um Carnaval
e sobrevém a quarta feira...
Não tem o apoio da família, não tem acesso
à educação, e encontra a rua. - "Tia,
me dá um trocado?" - "Sai pra lá menino,
olha que eu chamo a polícia!"
O tráfico, bem organizado, cria sua própria moral,
robusta: sem metas, além da ação presente;
sem valores maiores que os da sua vontade. Nenhum significado transcende
seus atos: Moral sem Ética. Mores, sem Ethos.
O tráfico agasalha a criança e lhe oferece oportunidades
no crime: basta roubar, cheirar e matar - e será respeitado.
O tráfico intimida e organiza a comunidade: é escola,
religião e família.
Lá se aprende, como na escola; existem regras, severas e
duras, como no exército; lá se exige a total entrega
do corpo e da alma, como na igreja; lá se oferece diversão,
como no samba. O tráfico é jogo de vida ou morte,
como o futebol; e permite subir rápido na vida, como no mundo
neoliberal.
O tráfico atrai - sejamos sinceros. Respeitando suas leis,
cada qual tem garantido o seu lugar. Não respeitando, mesmo
que tenha seis anos, como no filme, leva um tiro no pé ou
uma bala no pescoço.
Quando digo que a nossa sociedade é uma vasta rede de crime
organizado, digo a verdade: ela reduziu 50 milhões de brasileiros
à fome. Isso é crime organizado, porque estão
sendo esfomeados sob o império da lei, no país que
é a décima economia mundial.
Essa constatação não deve, nem pode, levar-nos
ao desespero! Deve nos estimular a reconstruir a nossa sociedade
estapafúrdia, fazê-la renascer, e torná-la Ética.
Fraturas e Destroços
O teatro, dizia Shakespeare, é um espelho onde vemos a nossa
imagem, vícios e virtudes. O espectador é testemunha.
No Teatro do Oprimido, mostram-se imagens da realidade que se quer
mudar; um conflito humano, provocado por uma fratura na Moral vigente.
No TO, o espectador é chamado a invadir a cena e buscar alternativas
para os conflitos que vê, é convidado a consertar a
fratura social, exposta.
O que é uma fratura? Um ponto preciso onde a estrutura social
se quebra. Uma ferida em corpo são.
Uma empresa desrespeita direitos trabalhistas: houve fratura - faz-se
um fórum para organizar a greve e exigir respeito. Grileiro
expulsa camponeses das terras que roubou: fratura! Faz-se um fórum
para escolher os caminhos da resposta adequada. Estas são
fraturas sociais e, através do teatro, busca-se curá-las,
remir vítimas.
O que vemos não são fraturas mas destroços
de sociedades despedaçadas. Não existem paradigmas.
Não existe o errado porque não se pratica o certo.
A Moral que prevalece - moral, em latim, mores, costumes! - está
em reta de colisão com a Ética - em grego, metas,
objetivos, valores que se pretende alcançar!
Mores é o que é; o Ethos é uma tendência
a ir onde ainda não se está. Mores é passado
e presente; Ethos, presente e futuro!
Moral se refere àquilo que é comumente aceito; Ética
ao que queremos que venha a ser.
A escravidão, como hoje o latifúndio, já foi
Moral: ninguém se espantava que um rico possuísse
escravos, como poucos se espantam, hoje, que 1% da população
brasileira seja proprietária de 50% da nossa terra cultivável,
e que os 10% mais ricos tenham 90% do poder econômico do país,
enquanto que os 90% mais pobres, apenas 10%.
Diante da escravidão, ninguém devia nem dava explicações:
era a moral vigente, como são hoje a miséria e a fome
neste país tão rico. O comportamento ético,
ao contrário, antevia a Abolição e a prenunciava,
como hoje antevemos e prenunciamos a Reforma Agrária e a
justa distribuição de renda. Somos éticos e
não apenas morais.
A Complexidade do Trabalho Teatral em Presídios
Quando trabalhamos com grupos sociais, com cujas metas e valores
éticos nós estamos de acordo - como com os camponeses
do MST, os Sindicatos dos Bancários e dos Professores, comunidades
carentes, negros oprimidos por serem negros, e mulheres por mulheres
- com eles estabelecemos uma parceria fraterna. Nossa função
é apoiá-los no que necessitem e desejem. Nossa política
é apoiar suas políticas. Não questionamos seus
valores porque são os nossos.
Nos presídios ou nos reformatórios, ao contrário,
temos parceiros que praticaram atos que não aprovamos. Com
eles não nos podemos identificar, embora possamos compreendê-los:
não cometemos crime ou delito, mas somos capazes de trabalhar
com quem os cometeu, e paga a pena (1)
.
Para isso, é necessário que os presos retifiquem suas
metas e valores éticos - não podemos ajudá-los
a cometer, outra vez, os atos que os levaram à reclusão.
Nossa função é ajudá-los a compreender
as ações que, no passado, praticaram, para que possam,
no presente, inventar outro futuro, e não aquele que antes
desejavam, ou que parecia inevitável. A retificação
de valores éticos é indispensável.
O desejo dos prisioneiros de retificar seu comportamento tem se
revelado, para nossa alegria, verdadeiro, e tem tornado nosso trabalho
útil e prazeroso.
Ver, em cena, o ato praticado, é a melhor forma de compreendê-lo
em toda a sua extensão, e a melhor forma de transformar-se.
Imaginar o futuro, a melhor forma de realizá-lo.
O próprio fato de que os sentenciados aceitem trabalhar conosco
já mostra sua necessidade de diálogo
Quando trabalhamos com os presos, nossa relação é
bi-polar: nós e eles. Nessa bi-polaridade surgem contradições
de valores éticos e comportamentos morais. Quando trabalhamos
com educadores e agentes - mesmo que não no mesmo espaço,
nem ao mesmo tempo - essa relação se converte em triangular.
As contradições se multiplicam e devem ser tomadas
em conta.
Temos que levar em conta a existência de quatro Códigos
Éticos que se emaranham na complexidade dessas estruturas.
Primeiro: o dos agentes (2).
Temos que ver, teatralmente, como se mostram no presídio
e em outras relações de suas vidas cotidianas. Em
que aspectos a função agente orienta ou limita suas
ações e pensamentos. Aentes, em situações
prisionais, não podem ser apenas a função que
exercem, aceitar as definições usuais dessa função
sem questioná-las. Antes de ser Agentes, são gente.
Nem o presídio é depósito de lixo humano (3),
nem os agentes não são leões de chácara,
Cérberos, porteiros do Inferno: devem ser educadores, professores,
conselheiros e amigos. Os agentes são quem mais intenso contato
têm com os prisioneiros, suas necessidades e angústias.
Trabalhando com agentes temos que ajudá-los a dignificar
sua função que promove a transição entre
o presídio e a liberdade. Agentes não podem ser apenas
guardadores de chaves e usuários de cassetetes - agente deve
ser uma função nobre, como a do médico e a
do professor: ensina e ajuda a curar.
Temos que mostrar, em linguagem teatral, que os Direitos Humanos
se referem a todos e não apenas aos presos e suas famílias.
Se, nos agentes, existe a justa preocupação com a
segurança, própria e alheia, temos que mostrar que
a insegurança deriva da ignorância, não do saber;
do monólogo que limita, e não do diálogo que
esclarece e ensina.
O Teatro do Oprimido, trazendo o diálogo, traz o entendimento:
traz a segurança, e não o desconforto, não
o perigo.
A revalorização das funções dos agentes
deve ser a primeira e mais essencial das nossas preocupações.
Se um agente a um detento inflige tratamento desumanizador, é
ele próprio que se desumaniza. Fazer é ser! Sou o
que faço!
Segundo: o Código Ético do sentenciado, que contém
o seu legítimo desejo de existir e ser alguém - quero
ser respeitado, disse a criança! Esse Código tem que
ser analisado em seus desvios, o joio e o trigo, para que ele possa
entendê-los sob outro prisma, outra luz - para que possa confrontar
seus valores aos de outras Éticas que não a sua. Para
que o estigma de sentenciado não impeça a transformação
que, nele, devemos estimular.
O tempo passado na prisão deve ser tempo de aprendizado,
amadurecimento. A privação da liberdade, no espaço,
deve intensificar o aproveitamento da liberdade no tempo. Temos
que recusar o conceito de presídio-depósito, presídio-lixão.
Como poderá o sentenciado, ainda no presídio, separar-se
do estigma de sentenciado, para que o seu rosto não se transforme
na rígida máscara que o cobre? Como ajudá-lo
a se reintegrar à sociedade? Cumprida a sentença,
o sentenciado deixa de sê-lo, mas não deixa de ser
a pessoa humana que é, capaz de se transformar. Como ajudá-lo
a não carregar consigo para o resto da vida, o morto - o
preso - aquilo que foi e já não é? Como renascer,
redescobrir-se sem rótulos? A pena cumprida e a dívida
paga, a marca de sentenciado, como no gado a marca do dono, não
pode persegui-lo até o fim da vida.
Terceiro: o Código Ético Polimorfo, vigente na nossa
sociedade, como tem sido até agora, que deve ser exposto,
analisado e criticado - a verdade não pode ser escamoteada.
Muito menos quando se faz teatro, que é coisa séria.
Não podemos pretender edificar uma sociedade sadia fazendo
de conta que essa que temos em nosso país é aceitável!
Não podemos fingir que vivemos em um país justo onde
reina a eqüidade, quando o sabemos iníquo: temos que
expor os crimes que essa sociedade que castiga, comete, impune.
A sociedade não é responsável por todos os
crimes e delitos que em seu seio se praticam; mas tem sua parte.
Por que escondê-la, se não somos seus cúmplices?
Quando se fala em re-inserção social temos que ter
o cuidado de perceber que não se trata de re-inserir o ex-presidiário
no mesmo âmbito doentio onde o delito ou crime foi cometido,
nas mesmas condições que prevaleciam nesse momento.
A re-inserção deve ser transformadora: mudanças
devem ser feitas dos dois lados. Do contrário, será
inevitável que a re-inserção seja seguida de
re-incidência (4).
Quarto, o nosso próprio Código Ético que nos
leva a nos aliarmos aos oprimidos - aos sentenciados (5),
agentes, funcionários e famílias - a todos a quem
se limitou o direito ao diálogo e se impôs a unilateralidade
coercitiva do monólogo.
Não somos juízes, não julgamos - mas temos
o nosso Código, através do qual vemos o mundo. Como
evitar que, com ele, manipulemos nossos parceiros, impondo nossas
visões, sem que, a elas, renunciemos? O Teatro do Oprimido
é o teatro da troca, não da coerção.
Tem um fundamento filosófico que deve ser preservado. É
democracia: arena onde se cruzam idéias e emoções.
Todos têm que ter o direito à palavra e à ação
teatral: a manipulação, assim, é impossível.
Este confronto de Códigos Éticos, de Valores e Metas,
é a primeira estrutura a ser harmonizada. Estes Códigos
existem e fazem com que tudo que se diga ou faça, não
tenha nunca o valor do emissor da mensagem mas, sim, o valor que
o receptor lhe atribui.
O importante não é o que se diz, mas o que se ouve.
Não o que se pretendeu exprimir, mas o que pôde ser
entendido.
A Linguagem Separa Como Aproxima
Temos que cuidar de palavras e gestos, porque cada grupo social
tem diferentes estruturas de significados, e entenderá os
mesmos símbolos - inclusive a linguagem verbal e gestual,
a roupa com que estamos vestidos, nosso rosto, nossa voz, nosso
comportamento - somente depois de traduzi-los em seu próprio
idioma ético e vernacular. Como se, para cada palavra que
dizemos, existissem quatro dicionários que a definissem em
quatro línguas intraduzíveis.
Mais do que nunca, a palavra pronunciada não é a palavra
que será entendida. Cuidado: temos que ter a consciência
de que estamos entrando na Torre de Babel!
Nisto, o teatro nos ajuda, pois que o teatro é a soma de
todas as linguagens existentes, o que torna o diálogo possível:
se não entendo a palavra, entendo o gesto; se não
o gesto, o som; se não o som, o silêncio; se não
o silêncio, a cor; se não a cor, o movimento. Se nada
disso entendo, entendo o seu conjunto, que é maior do que
a soma aritmética dos seus fatores. Nossa comunicação
não é apenas racional: é estética, sensorial.
É consciente e é inconsciente. Pelos sentidos também
fala a razão.
Outro cuidado que temos que ter é o de separar o fato acontecido
da sua causa; separar o fenômeno, que é sempre único,
da lei geral que o rege e rege fenômenos semelhantes, sempre
únicos. Não é nossa função julgar
o crime, o delito: nossa função é entender
suas causas para que não se repitam os efeitos. Através
do teatro, ajudar a que todos tomem consciência dos seus atos,
do significado dos seus atos e das suas conseqüências.
Das alternativas que teve ao seu dispor e das que poderá
inventar.
Agentes, sentenciados, e mesmo nós, temos que entender que,
quando fizermos uma sessão de Teatro do Oprimido, não
estaremos falando de casos individuais, deste ou daquele sentenciado
ou agente, desta mãe ou daquele pai, mas estudando comportamentos
morais e buscando alternativas éticas.
Temos que criar um efeito de admiração, espanto e
surpresa. Com o maior respeito por todos os envolvidos. Tudo que
mostrarmos em cena deve vir acoplado com o que poderia ter sido
ou poderá vir a ser. Todo ato é escolha! A vida é
escolha: temos múltiplos caminhos diante de nós -
fatalidade não existe. Destino se constrói. Futuro
se inventa.
Uma sessão de Teatro do Oprimido sempre tem caráter
subjuntivo: e se fosse assim? Como seria se assim fosse? Além
de subjuntivos somos socráticos: com perguntas, temos que
fazer com que cada sentenciado descubra verdades. Como Sócrates
fazia com seus alunos: perguntava. Ao responder, os alunos descobriam
o que, no íntimo, já sabiam.
Quando um camponês sergipano disse que - "O Teatro do
Oprimido é fantástico porque, nele, a gente aprende
o que já sabia!" - disse que através do teatro
trazemos à consciência o que estava obscuro, ao vermos,
no espaço estético, à distância, aquilo
que acontece ao nosso lado, sem o registro da razão.
Em São Paulo, uma equipe de agentes criou uma peça
na qual os sentenciados eram interpretados pelos próprios
agentes. No momento em que um agente, representando um prisioneiro,
recebeu a ordem de baixar a cabeça, colocar os braços
para o alto e separar as pernas para a revista, pela primeira vez,
sentiu a humilhação que estava tão habituado
a infligir, sem perceber. Viu a situação e se viu
em situação - isto é o teatro: ver-se vendo;
observar-se agindo.
Por que o Teatro do Oprimido e, além dele, todas as artes?
Nós somos aqueles que acreditam que todo ser humano é
artista; que cada ser humano é capaz de fazer tudo aquilo
de que um ser humano é capaz. Talvez não façamos
tão bem uns como outros, melhor que outros, mas cada um pode
sempre fazer melhor do que si mesmo.
Eu sou melhor do que eu, melhor do que penso que sou, posso vir
a ser melhor do que tenho sido, mais amplo, generoso, menos circunscrito
a mim. Eu, o sentenciado; eu, o agente, o funcionário, o
artista. Artistas somos, todos nós.
Nós acreditamos que o ato de transformar é transformador:
quando transformo, eu me transformo. Não como os animais,
que também transformam a realidade, porém dentro de
um projeto geneticamente determinado. Cada pássaro canta
o seu gorjeio e não o alheio; o seu trinado, sempre o mesmo,
é sem surpresas. Só com o ser humano, que é
capaz de sonhar o futuro, nasce a Cultura, nasce a Arte, a Ciência,
a invenção. Nasce a certeza de que um mundo melhor
é possível!
Todo ser humano é produtor de Cultura porque Cultura é
toda ação transformadora realizada por homens e mulheres:
não o que fazem, mas a maneira de fazer. Ser humano é
ser capaz de criar Cultura.
A sentença do presidiário prevê a limitação
da sua liberdade no espaço, mas não limita as atividades
do seu espírito, da sua inteligência e sensibilidade,
no tempo. Não prevê que, dele, se extraia a sua condição
humana - isso seria um crime.
O primeiro de todos os Direitos Humanos é o direito á
Cultura, o direito de existir! Esse direito é inalienável.
No nosso país não existe pena de morte: a inatividade
seria a morte parcial, morte social, isolamento do ser humano em
si mesmo, sem pontes para o diálogo. Ninguém pode
ser sentenciado ao imobilismo, à paralisia, condenado à
inexistência. Não se pode praticar uma metafórica
lobotomia nos detentos.
O presídio tem que ser escola, laboratório, fábrica.
O direito de crescer intelectualmente não foi ao preso negado
pela Justiça. Digo mais, para que retifique seus erros, esse
crescimento é necessário. Aqui entra a Cultura. O
ser humano é criador, e cada vez que alguma coisa cria, outras
criações tornam-se necessárias. Cada uma de
suas descobertas cria a necessidade de novas descobertas; cada invenção
pede invenções.
A Cultura é o conjunto das maneiras diferenciadas e não
geneticamente programadas, com as quais os seres humanos transformam
a natureza. Cultura é a concretização da necessidade
humana de recriar a natureza, reinventá-la; é o desejo,
muito humano e até ingênuo, de querer ser como Deus,
criador. Diz uma lenda que Deus, em tempos tão remotos que
nem eu me lembro, teria pedido, a nós, artistas, que tentássemos
organizar melhor a natureza que Ele, em apenas seis dias úteis
- pois descansou no domingo, o que prova que ninguém é
de ferro - não teve tempo de fazer, deixando tudo pela metade.
Quando cria Cultura e inventa a Arte, o ser humano realiza a proeza
de se tornar humano, sem perder a sua condição animal.
Não podemos voltar atrás. Eu me recuso a morar em
cavernas e detesto carne crua.
Fazer arte não significa apenas tocar violão, cavaquinho
ou reco-reco: significa expandir-se. Expandir-se é a essência
da vida. Desde a nossa maculada concepção, desde o
embrião, nós temos que nos expandir, no corpo e na
alma. Conquistar territórios, físicos e espirituais
- entre os meios de fazê-lo, prima a Arte. Não só
o teatro, mas a música, a pintura, a escultura, a literatura,
a dança. Se o tempo do preso é livre, por que não
escreve um poema?
Uma Obra de Arte não é reprodução, é
a representação da Natureza e da vida social. Essa
representação deve ser percebida pelo observador sem
a qual a Obra de Arte é Coisa, não é Arte.
Os girassóis de Van Gogh, como a maçã de Magritte,
serão apenas flor e fruta se não forem percebidos
na dimensão estética que os artistas lhes deram.
Porém, vejam bem: a maçã e os girassóis,
quando ainda no pomar ou jardim, já haviam sido vistos pelos
seus pintores como Arte, antes de serem pintados, antes de serem
Obra. Isto prova que a Arte é o artista, ou nele está
inscrita, e não o seu objeto, a Obra de Arte, que só
será Arte se, nela, estiver inscrito o artista.
Esta distinção tem que ser feita: Arte é a
percepção e a forma de perceber; Obra de Arte é
o objeto percebido, é a Coisa que, tendo sido transformada
pelo artista, permite a percepção de valores e a fruição
de visões, que vão além da Coisa que, nela,
não estão inscritos, mas sim no artista que nela se
inscreve. Disse Baudelaire que o artista é como Deus que
deve estar onipresente em sua obra, porém invisível.
Arte é processo; Obra de Arte é objeto, Coisa.
O artista vê a Coisa, e o observador vê aquilo que,
na Coisa, viu o artista. Van Gogh via girassóis de uma maneira
de que só ele era capaz de ver, e o espectador, vendo seus
quadros, vê o que viu Van Gogh em seu jardim, vendo girassóis.
Não vê apenas bela tela colorida, pendurada na parede
de um museu - esta é apenas o suporte da Arte. Mas o próprio
suporte, que é Coisa, pode também ser estetizado.
O processo é o mesmo, no artista e no espectador, e consiste
em serem ambos capazes de fazer uma abstração: ver,
na Coisa, a representação dessa Coisa. Girassóis
(Coisa) --> Van Gogh; quadro de Van Gogh (Coisa) --> espectador.
É necessário que o espectador seja também artista,
pois deve realizar, a posteriori, na fruição da Obra,
o mesmo processo estetizante que o artista realiza, ao criá-la.
O nosso projeto de Estética do Oprimido consiste em desenvolver
esse atributo de sermos capazes de ver, na Natureza, a Arte, sem
que seja necessária a intermediação da Obra
(6); e, na Obra, ver a Arte
além da Coisa que a corporifica, sejam objetos ou sons. Seremos
artistas se formos capazes de nos fundir e confundir com a Obra,
nossa ou alheia. Seremos artistas se formos capazes do espanto.
Capazes de nos admirarmos com uma flor silvestre e com a lata de
lixo.
Como vemos, Arte é, também, a relação
da Obra com o seu espectador, mas não o objeto em si mesmo
(7) - este é a Obra
de Arte. Arte é a maneira de ver, não a Coisa vista.
Mas, para que possa ser vista, há que se transformar a Coisa
natural em Coisa Estética.
Como se produz a Obra de Arte? Os sons andam por aí, rodopiando
no espaço, aleatórios, e podem ser lembrados, recriados
em nossa memória, inventados na nossa imaginação:
sons reais ou imaginados - sabemos que a imaginação
é uma forma de realidade. Tudo é real: o corpo e a
alma. Se nós organizamos os sons no tempo, estaremos inventando
a Música, pois que a Música é a organização
do som e do silêncio, no tempo.
E o que são as Artes Plásticas, se não a organização
das cores, dos traços e dos volumes, no espaço? E
o que é o Teatro, se não a organização
das ações humanas, no espaço e no tempo? O
artista organiza o mundo segundo a sua percepção subjetiva
- esta é a nossa linguagem, por isso somos artistas e não
cientistas: na busca da verdade, vale a nossa subjetividade, não
apenas o teste de laboratório. Quanto mais fundo penetrar
dentro de mim mesmo, mais próximo estarei do Outro, meu semelhante.
Qual o significado da frase "o ato de transformar é
transformador"? Se eu transformo a argila, o barro, a areia
da praia e, com isso, faço uma estátua, estarei criando
uma obra de arte, transformando a realidade. E o fato de transformar
a areia em escultura, a mim me transforma em escultor. Agora sou
artista. Se organizo os sons que ouço à minha volta,
ou escuto no meu espírito, e se os ordeno no tempo, escrevo
uma partitura; transformo a desordenada realidade sonora da natureza
em Canção, e o ato de transformá-la, a mim
me transforma em compositor.
Se agarro com mão firme as palavras que estão no dicionário,
ou correm de boca em boca, se as ordeno do jeito que só eu
sei, se as manipulo, alongo, encurto, mudo seu sentido; se transformo
palavras, significados, invento sintaxes, rimas e ritmos, e escrevo
um poema, estarei transformando a realidade das palavras, e o ato
de transformá-las e criar um poema, a mim me transforma em
poeta - aquele que transforma as palavras.
A mesma coisa acontece com o teatro, quando se trata de Teatro do
Oprimido, quando o espectador se transforma em espect-ator, quando
invade a cena e cria imagens ideais do que deseja que venha a ser
a sua realidade, quando sonha o seu real possível. O espectador
transforma as imagens da sociedade que vê e não ama,
em imagens que ama e deseja, imagens de uma sociedade justa, convivial.
O Teatro do Oprimido nos liberta a todos, pois que somos todos prisioneiros:
os sentenciados, prisioneiros do espaço; nós, do tempo.
E o ato de transformar a realidade, mesmo em imagem, é um
ato transformador, pois que a imagem do real é real enquanto
imagem! Sendo o teatro a soma de todas as artes, o espectador, invadindo
a cena, transforma-se em escultor, em músico, em poeta; entrando
em cena, mostrando, em ação, sua vontade, sendo protagonista,
o espectador se transforma em cidadão! O sentenciado em homem
livre!
Seres humanos, desde que somos concebidos, necessitamos nos expandir,
para dentro e para fora. Para fora, buscando um território
que seja maior que o volume do nosso corpo - a casa, o jardim. Para
dentro, a poesia. Todas as poesias. Para fora, a terra firme, o
pão e as flores; para dentro, a sabedoria.
Por isso, todo praticante do Teatro do Oprimido deve praticar todas
as artes possíveis, expandir-se em todas as direções.
Como somos artistas, como somos românticos, nós acreditamos
naquela frase tão linda do poeta cubano José Marti:
"A melhor maneira de se dizer, é fazer!" Ainda
mais: ser é fazer, e fazer é ser.
Não seremos jamais aquilo que não fizermos: sou padeiro
porque faço pão; não sou astronauta porque
jamais tirei os pés da terra firme. Quem teme o mundo, jamais
será cidadão.
Queremos conquistar identidade e cidadania, porém só
seremos cidadãos se formos capazes de intervir na sociedade
e transformá-la naquela que desejamos, pois esta que temos
não presta. Foi assim que certos hominídeos desceram
das árvores e construíram abrigos, contra a opinião
de certos hominídeos, pessimistas e derrotistas, que achavam
que isso não seria possível e decidiram continuar
pendurados pelo rabo aos galhos mais robustos até que a espécie
desapareceu. Foi assim que os seres humanos saíram das cavernas
e edificaram casas; plantaram sementes e colheram o trigo; moeram
o trigo e fizeram o pão. Assim será quando estivermos
decididos a construir uma sociedade justa, não predatória:
uma sociedade humana - nós nos humanizaremos. Assim será!
Para isso, é preciso sonhar, não o sonho ruim que
substitui a realidade, mas o sonho bom que a prepara. Para isso
serve o Teatro do Oprimido: para desoprimir. Para isso serve a nossa
parceria: para que possamos nos desenvolver como seres humanos,
como artistas.
Fazendo arte, estaremos dizendo o que pensamos, inventando a sociedade
que queremos, sendo nós mesmos. Cidadãos solidários.
Exemplo Prático: A Estética no Trabalho
Com os Jovens em Conflito Com a Lei
Se os jovens de um educandário judicial têm o tempo
livre, não podem ser confinados inativos, sob pena de serem
embalsamados em vida. Seus neurônios devem ser estimulados
e não postos a dormir. Neurônios não podem ser
encarcerados nas jaulas da inatividade.
Não pode existir, nesse infernal Nirvana que são as
prisões e os educandários judiciais, a hedionda Pena
de Imobilismo, ausente dos Códigos Penais.
A vida humana implica em atividades incessantes, mesmo durante o
sono: nenhum de nós pode parar de respirar, nem nosso coração
cessar suas batidas. O sangue circula em nosso corpo, sem descanso.
Se, pela doença, em alguma artéria ou veia deixa de
circular, sobrevém a necrosante gangrena.
Da mesma forma não podemos parar de sentir e pensar, mesmo
no sono mais fundo: a gangrena espreita! Sonhamos e os sonhos nos
lembram que estamos vivos, mesmo dormidos!
Essas atividades sensoriais e psíquicas exigem o relacionamento
com o mundo exterior. Se o jovem em conflito com a lei, diante de
si nada mais vê do que uma parede branca manchada de sangue,
terá as sensações de uma parede dessa cor,
de antigo sangue manchada. Se nenhuma atividade ou idéia
inteligente lhe é oferecida, se nenhum mundo aprazível
lhe é mostrado, estará condenado ao rodamoinho das
idéias obsedantes e obcecantes que circulam em suas cabeças
e à sua volta.
Os jovens em conflito com a lei, na sua grande maioria, fizeram
parte ou foram usados, subordinados e sem poder de decisão,
por um ou outro Comando do tráfico de drogas. Em alguns casos,
continuam essas pertenças no confinamento, separados em espaços
prisionais. Temos que compreender que esses jovens viveram em falsa
liberdade dentro do mundo moral imperativo do tráfico que
já cerceava suas possibilidades de escolha e, sem oferecer
opções, determinava o seu futuro.
Sua percepção do mundo e dos valores desse mundo era
intransitiva e inquestionável. O jovem recebia ordens peremptórias
e obedecia. Exatamente o contrário do Teatro do Oprimido,
que propõe o conhecimento e a escolha.
No reformatório, essa visão do mundo se confirma:
o jovem encontra o mesmo autoritarismo, abaixa a cabeça e
leva pancada (8). No entanto,
a vocação dessas instituições deveria
ser o contrário: a escola, o aprendizado. O jovem recebeu,
como Pena Judicial, o seu cerceamento no espaço. Aqui, recebe
a Pena Carcerária: é condenado à desestruturação
do seu tempo, no qual, teoricamente, seria livre, e que deveria
ser usado para o seu crescimento humano.
É necessário ajudar os jovens a que construam, esteticamente,
o mundo ético no qual vivem e a criarem imagens que o corporifiquem,
para que possamos melhor entendê-lo e, depois, deixando-o
de lado, construir - sempre com esses mesmos jovens e não
em lugar deles - outros mundos éticos Subjuntivos - "...
e se?" - procurando igualmente entendê-los e compará-los
com o triste mundo real onde habitam.
O Teatro Subjuntivo subjuntivisa todo o processo teatral e não
apenas o Fórum.
Vamos, sim, encontrar obstáculos. Um deles - e não
o menor - consiste no fato de que é essencial, ao Método
do Teatro do Oprimido, a busca serena, sem pressa e sem atropelos:
para nós, é importante que cada pessoa amadureça
seguindo o seu próprio ritmo, segundo suas próprias
possibilidades, necessidades e desejos. Não temos uma política
de resultados que quantifique, sistematize e enumere conquistas
e transformações pessoais e sociais. Não temos
uma política de eventos, a não ser circunstanciais
e como apêndices do nosso verdadeiro trabalho.
Por outro lado, é natural que os patrocinadores de qualquer
projeto cultural queiram ver resultados em curto prazo, quantificá-los
de forma objetiva, se possível em números, para avaliarem
melhor a relação custo-benefício. Isto, tanto
acontece com o financiamento governamental, como quando os projetos
são patrocinados pela iniciativa privada.
Pelo terceiro lado, nossa indignação com as precárias
condições que temos observado nos educandários
nos incita a tentar uma ação rápida, urgente,
direta. Queremos mudar tudo, já! Intervenção
Shazan!
Não somos Super-Homens nem Mulheres-Maravilha capazes de
resolver todos os problemas e aplacar ansiedades, saciando sedes!
Mas podemos tentar ir além um pouco do nosso real poder.
Dizemos sempre: todos nós somos sempre melhores do que pensamos
ser. Então? Sejamos otimistas.
Notas
1. Alguns de nossos Curingas já reconheceram
pessoalmente alguns dos jovens em reformatórios como seus
antigos vizinhos ou amigos de infância. Volver
2. Ou educadores. Aqui, usaremos o nome genérico
de agentes, mesmo sabendo que em vários presídios
a função de educador, ou assistente social, é
mais importante. Volver
3. Ontem, os Hospícios eram lugares malditos
onde os loucos perambulavam pelos pátios, sem rumo, às
vezes nus e com fome. Esperavam a morte como hoje os presos esperam
o fim da pena. Volver
4. O imenso grau de violência que se espraia
pelo país, no seio de uma população entorpecida
e amedrontada, é espantoso. O crime é espantoso, e
mais espantosa é a sua ausência. A sociedade brasileira
é criminosa e isso espanta, e mais espanta que cinqüenta
milhões de esfomeados ainda não tenham invadido supermercados,
depósitos de comida, fazendas com seus estoques de alimento
e gado, para matar a fome antes que a fome os mate. Espanta que
aqueles que recebem salário mínimo ou menos, ainda
não tenham invadido os bancos que, no primeiro semestre de
2002, tiveram mais um bilhão de reais de lucro, neste país
desnutrido. Os milhares de empregados, postos na rua por empresas
que se fundem buscando lucros, nos espantam pelo seu silencio e
por sua estóica boa educação; mais ainda nos
espantam porque, sabendo que seus salários serão usados
para aumentar os lucros dos acionistas, mesmo assim - isso é
espantoso! - calam-se e não ocupam as empresas que os desempregaram.
Temos que nos espantar com os crimes sociais silenciosos, antes
que sejamos obrigados a nos espantar com os crimes espetaculares
que nos ameaçam cada vez mais. Volver
5. Não posso esconder que já fui
prisioneiro e sei o que sentem; conheço a importância
do tempo e do espaço na vida de um detento e posso me lembrar
do que sentia; mas nunca fui agente nem funcionário de uma
prisão - só posso imaginar o que sentem. Volver
6. Pedimos ao nosso grupo de empregadas domésticas,
as Marias do Brasil, que escrevessem cada uma o seu poema. Foi o
que fizeram. O ato de escrever era a Arte; os poemas, a Obra. No
nosso conceito de Educação Estética do Oprimido
prima a Arte sobre a Obra. Não queremos submeter os seus
poemas ao crivo da crítica literária, saber se eram
bons ou maus, mas observar o seu ato de escrever, de escolher palavras.
Este ato era transformador e transformou as empregadas domésticas
em poetas.
Faz agora dois anos todos os nossos seis grupos de Teatro Legislativo
fizeram, cada um, a sua escultura com lixo limpo de suas comunidades,
baseados no tema Ser Humano no Lixo: o ato de esculpir a todos transformou
em escultores. Volver
7. Certas tendências da arte contemporânea
enfatizam a realidade bruta, não trabalhada, e a cercam de
elementos que permitam que seja vista em outro contexto, outro ambiente,
outras relações. Um prato de feijão com arroz,
em si mesmo, não é arte; iluminado por uma luz violeta,
ao lado de uma ratazana azul, morta, em cima de uma toalha verde,
pode tornarse. Volver
8. Um funcionário, quando aplica castigos
corporais aos jovens, como costuma acontecer, viola o mesmo Código
Penal que esses jovens violaram, viola a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e a Constituição do
país, que não permitem castigos corporais, cruéis
ou degradantes: aqueles que assim se degradam - degradando, ofendendo
física e moralmente aqueles a quem devia proteger - que autoridade
podem ter para exercerem a sua autoridade? Volver
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