HACER TEATRO HOY. BRASIL
CONJUNTOS ANALÓGICOS E CONJUNTOS COMPLEMENTARES

Uma Teoria para o Teatro Subjuntivo
Augusto Boal

 

A Natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia, nem os fios da minha barba, nem gêmeos univitelinos, nem impressões digitais, nem árvores da floresta, nem galhos e folhas, nem as estrias dessas folhas... nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisas inanimadas e todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis, mesmo se clonados.

Para seres semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vida psíquica, seria impossível viver dentro dessa infinita diversidade se não pudessem organizar a sua percepção do mundo e simplificá-la.

Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos -tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações recebidas.

Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências simples das realidades complexas, através da construção de Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares. Embora simplificações excluam complexidades, outro jeito não há.

Nenhum peixe é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes se assemelham: eis o cardume. Nenhuma rosa é igual à outra rosa, mas as rosas se parecem, vermelhas, brancas ou amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas pode-se abstrair as diferenças que, ao microscópio, existem, claras e profundas.

Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra, a floresta verde, e plúmbeo o céu de chuva... Sabemos que não é bem assim.

Por analogia, podemos perceber e formar Conjuntos Homogêneos que englobam elementos semelhantes, mas não iguais -unicidades- em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera, um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.

Podemos perceber, também, Conjuntos Heterogêneos, feitos de elementos complementares. Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos corre água, no caudaloso Amazonas ou no riacho do Ipiranga; suas margens são diferentes, mas todas oprimem a água que neles corre; as pedras, no leito do rio, são desiguais no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas de matérias diferentes, orgânicas ou minerais.

Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de coisas inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem ser percebidos como Conjunto: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos elementos únicos que o compõem. Podemos nomear como rio todos os outros Conjuntos que podem ser percebidos como semelhantes a este. Todos os rios têm a identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falando quando falamos do Nilo ou do Arroyo de la Sierra (1) de José Marti.

Podemos perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes, mesmo sabendo que não são iguais; ver o rebanho como Conjunto de animais da mesma espécie, mesmo tendo cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome; podemos ver a multidão como um Conjunto de seres humanos -embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.

Dessa forma, simplificando a Natureza, podemos viver sem sobressaltos: unicidades podem ser sistematizadas em Conjuntos Analógicos de seres e coisas semelhantes, ou em Conjuntos Complementares de coisas e seres dessemelhantes. Nessa simplificação, perde-se a riqueza das diferenças e das identidades únicas que, por infinita, é inacessível.

Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da Natureza que nos ignora, funciona como couraça que não nos permite o acesso ao real (2).

Para que nos possamos comunicar, esses Conjuntos devem ser nomeados: nomeamos montanha todas as protuberâncias da terra que beijam o céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual à outra montanha, nenhuma nuvem igual à outra nuvem, nenhum sonho igual ao meu. Nomeamos mar -mar de gente entusiasmada pela Cerimônia da Posse, mar de flores ao vento, mar de ondas raivosas- todas aglomerações onduladas de água, girassóis ou gente.

Nomear significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação, no tempo e no espaço, do que é fluido, do que não pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no tempo.

Tudo é trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou quem era antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a próxima?

Sou um rio de Crátilo (3): em mim, correm águas que não corriam e só agora correm; outras correram e jamais voltarão rio acima: esconderam-se no mar, sem olhar para trás.

Ninguém pode me ver duas vezes como sou, em cada instante fugaz da minha vida, como fugazes são os instantes e a vida. Jamais serei o mesmo a cada segundo que me foge. Aqueles que me vêem agora, jamais serão iguais a si mesmos em dois segundos sucessivos da trajetória dos seus caminhos.

Não sou: estou sendo, caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou. Temo: para onde? Escolho, se posso; sigo, se obrigado!

As palavras -os Nomes- são indispensáveis para que seja possível a troca, o diálogo, porém são significantes redutores de significados: designam Conjuntos mas ignoram as unicidades, que são a única realidade objetiva. Os negros e os brancos, os homens e as mulheres, o proletariado e o campesinato... nada disso existe. São, mas não existem. Existe este negro e aquela mulher, este branco e aquele homem, esta camponesa e aquele operário e, mesmo assim, em trânsito, em devir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar de ser.

As palavras, quando pronunciadas pelo emissor, são significantes com significados ricos das experiências desse emissor, das suas memórias e imaginações; no trânsito, esses significantes mudam seus significados, como caminhão que, de uma cidade a outra, troca sua carga: ao chegar ao receptor, as palavras estarão carregadas das experiências deste e não daquele (4).

Palavras são vazios que preenchem o vazio que existe entre um ser humano e outro.

Para que cheguemos ao Uno, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a todos os bois da boiada, pois esse gado é feito de unicidades bovinas irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada boi tem a sua personalidade própria: é Uno. A boiada é uma sinergia.

Palavras são obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las e buscar formas de comunicação que não sejam apenas racionais, mas também sensoriais -comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética da Razão é a razão do teatro e de todas as artes.

Não podemos divorciar razão e sentimento, idéia e forma. São sólidos casais, mesmo quando às cabeçadas e turras.

O Artista é aquele que, como qualquer de nós, é capaz de ver Conjuntos onde analogias ou complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver em sociedade. Porém, ao não se deter diante da visão conjuntiva que usamos para perceber a realidade, através dos Conjuntos Analógicos ou Complementares, ou para nos comunicarmos verbalmente, através das palavras, o Artista avança, penetra no real e revela, em seu fazer e na Obra feita, percepções e aspectos únicos dessa realidade encouraçada: percebe e revela unicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia e pelos sentidos que as agrupam, sem percebê-las. O Artista penetra na unicidade do ser (5), como se buscasse o seu complemento ou a sua Identidade na Alteridade: o Uno busca o Uno, busca a si mesmo no Outro (6).

Essa dinâmica percepção não se congela nunca, nem se imobiliza, mas se intensifica ou diminui de intensidade, sempre. Tanto a percepção do artista ao perceber a Coisa, como a do espectador ao fruí-la, ou a do amante ao amar. Amores se conquistam e se perdem, ao sabor da vida... e do domínio que, sobre ela, possamos alcançar. Como a Arte, que não é nunca a mesma.

Embora apenas algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de Artistas, todo ser humano é, substantivamente, artista. Todos possuímos, em maior ou menor grau, a capacidade de penetrar em unicidades, fazendo arte ou amor. Somos capazes de encontrar o Uno.

Arte é amor. A pessoa amada é o Ser Único, descoberto pelo amante e só por ele: amando, nós a vemos e sentimos como insubstituível, irreproduzível. O amor é uma experiência estética, é obra do imaginário: amar é Arte, e arte é Amor. Estes dois processos -amar e perceber esteticamente a unicidade de outro Ser- vivo ou Coisa -são absolutamente idênticos. Mais: são a mesma coisa (7).

Sendo idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção do Outro ou da Coisa não se congela nem se imobiliza: o Amor é fluxo de corrente alternada -como pode ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmos constantes- nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante variação.

É verdade que existem amores eternos e obras de arte perenes, mas nem a pessoa amada nem a obra admirada, são admirada e amada com a mesma intensidade constante. No amor e na arte, a única constante é a inconstância.

O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Da mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor, o cultivo do Amor é uma arte.

Para encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas, existem os artistas, cujas atividades estéticas -isto é, sensoriais- surpreendem as unicidades e permitem conhecer a verdadeira realidade, única. Na Arte, como processo, e na Obra de Arte, como coisa acabada, o ser humano entra em contato com o real.

Neste sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, não científica, subjetiva, sensorial; não é melhor que outras, mas é única. O artista, no exercício da sua Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidades escondidas pelos Conjuntos (8); na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmago do real e cria um novo Conjunto, a Obra, que revela o Uno descoberto nesse mergulho -este, por analogia, nos remete a nós mesmos.

Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven, a trêmula ária Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou a triste Donna traviata verdiana, em cada caso são acordes únicos que escuto, na anárquica infinitude dos sons e ruídos que explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em algum único lugar de mim, desperta e vibra, e me faz vibrar, como um todo, como ser humano -isto é a Arte.

Vibramos como artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de maneira única. Através da unicidade chega-se, por analogia, a um novo Conjunto imaginário -o daquelas pessoas que alguma identidade, não racional mas racionalizável, sentem com tais acordes, com o sorriso da Gioconda ou com a Vênus que, necessariamente, não pode ter braços. O eu se transforma em nós. Em nós, descobrimos a descoberta, aquela que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós, descobrimos o nosso verdadeiro Eu.

Metaforicamente, sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner e Velasquez... mesmo se jamais cantei como Valquíria, mesmo se jamais pintei bêbedos ou meninas.

A Arte re-descobre e re-inventa a realidade a partir de uma perspectiva singular: a do artista, que é único, como é única a sua relação com o real e o seu caminho de ver, do qual nasce a Obra de Arte. A realidade, tal como é vista pelo artista, só pode ser observada a partir da sua Obra, também única. (9)

O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a todos, e não depende da individualidade do solitário cientista. O Teorema de Pitágoras revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquer país, a qualquer hora do dia ou da noite, seja lá quem for o desenhista do triângulo. Newton jurou que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias e isso é verdade em qualquer estação do ano, chova ou faça sol.

A Ciência é uma Arte, mas Arte não é Ciência. A Arte não dá conta de toda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.

Na Educação Estética do Oprimido quando, em cada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial -células do sistema nervoso-, esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como bytes de um computador, armazenando informações. Eles não se esgotam nem se repletam -o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular! Ao contrário dos bytes, os neurônios estimulados se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens simultâneas, enriquecendo suas funções e estimulando neurônios vizinhos para que entrem em ação.

As sinapses são os pontos de encontro entre os neuritos -prolongações, como se fossem braços suaves que se abraçam entre si, e que outras células também abraçam- de um neurônio com o xxx outro neurônio, através de uma prolongação chamada Axônio, ou com outras células. Sinapses são superfícies por onde circula a informação -a imagem, o som, a palavra, o prazer e a dor, a lembrança...- através de processos químicos e/ou estímulos elétricos, ou por um que se transforma noutro. As sinapses se multiplicam e se diversificam, na medida em que são estimuladas (10).

Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis, como se fosse pintor. Quanto mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz, como se fosse cantor. Quanto mais fizer dançar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como poeta. Fazendo, serei pintor, poeta e cantor. Sou.

O saber, o conhecer e o experimentar expandem a minha capacidade de conhecer, saber e aprender. Expandem além da minha busca e me fazem encontrar o que nem sequer procuro. -"Não busco: encontro!"- disse Picasso. Nós também, se nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o que escutamos, sentir o que tocamos, escrever o que pensamos.

A percepção do mundo exterior se dá em três níveis, sendo o primeiro o da mera Informação: a luz que se reflete sobre os objetos à minha frente, ferem a minha retina que transfere essa energia luminosa para o nervo ótico que circula essa informação eletroquímica para aquela região do cérebro que me fará ver os objetos que tenho à minha frente. Recebo a mensagem. Essa informação, no entanto, que entra no meu cérebro através de circuitos neurais, não fica arquivada, parada, depositada em algum lugar do meu cérebro mas, pelo contrário, ativa se se interrelaciona com circuitos semelhantes e vizinhos, e essas estruturas são o Conhecimento -segundo nível da informação. Nestes dois primeiros níveis, o ser humano e os animais, em certa medida se igualam.

Se vejo a minha frente um tigre, o nervo ótico registrará a sua presença ameaçadora, o nervo auditivo seu rugido -recebo a informação. Porém, se parasse aí o processo psíquico, eu certamente -ou qualquer outro animal- seria engolido pelo tigre. Como se entrelaçam muitos circuitos de informação, eles me dizem ser o tigre perigoso, ser suas intenções brutais, ser possível correr assustado e me refugiar dentro de uma casa, ser possível escolher o caminho da fuga -tenho alguma chance de me salvar. Eu ou qualquer coelho, cabrito ou bezerro, partilhamos estas duas primeiras formas de percepção e reação: salve-se quem puder!

Já o terceiro nível, a Consciência, é exclusivo do ser humano: ela consiste em dar um sentido a todas essas informações estruturadas. O terceiro nível é moral e ético: ele projeta o ser humano em suas ações no futuro e não apenas em suas reações no presente.

No trabalho com os adolescentes, mais do que em qualquer outro, é importante ampliar e amplificar todos os níveis da percepção para que as escolhas sejam feitas com consciência -com ciência das possibilidades que existem em cada situação dada!

Se os jovens de um educandário judicial têm o tempo livre, não podem ser confinados inativos, sob pena de serem embalsamados em vida. Seus neurônios devem ser estimulados e não postos a dormir. Neurônios não podem ser encarcerados nas jaulas da inatividade.

Não pode existir, nesse infernal Nirvana que são as prisões e os educandários judiciais, a hedionda Pena de Imobilismo, ausente do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A vida humana implica em atividades incessantes, mesmo durante o sono: nenhum de nós pode parar de respirar, nem pode o nosso coração cessar suas batidas. O sangue circula em nosso corpo, dia e noite, sem descanso; se, pela doença, em alguma artéria ou veia deixa de circular, sobrevém a necrosante gangrena.

Da mesma forma não podemos parar de sentir e de pensar, mesmo no sono mais fundo: a gangrena espreita! Sonhamos e os sonhos nos lembram que estamos vivos, mesmo dormidos!

Essas atividades sensoriais e psíquicas exigem o relacionamento com o mundo exterior. Se o jovem em conflito com a lei, diante de si nada mais vê do que uma parede branca manchada de sangue, terá as sensações de uma parede dessa cor, de antigo sangue manchada. Se nenhuma atividade ou idéia inteligente lhe é oferecida, estará condenado ao rodamoinho das idéias obsedantes e obcecantes que circulam em suas cabeças e à sua volta.

A Educação Estética que propomos, no quadro do Teatro do Oprimido, sobretudo na nossa atual experiência com o DEGASE (11), é essencial, na medida em que produz uma nova forma de ver a realidade emocional, sensitiva e intelectual daqueles que, nesse processo, se engajam.

Esta é a forma mais natural de aprendizado e a mais arcaica, pois que a criança aprende a viver através do teatro, brincando, interpretando personagens. Os Jogos Teatrais sintetizam as antitéticas Disciplina e Liberdade -todo jogo tem regras claras que devem ser obedecidas; mas, mesmo obedecendo regras, a invenção é livre, a criação necessária, e a inteligência pode e deve ser exercida.

Todo jogo é um aprendizado de Vida; todo jogo teatral, um aprendizado de Vida Social. Os Jogos do Teatro do Oprimido são um aprendizado de Cidadania.

Sem Disciplina, não existe Vida Social. Sem liberdade, não existe Vida.

Como disse um camponês do MST: -"O Teatro do Oprimido é maravilhoso porque permite que a gente aprenda tudo aquilo que já sabia!"

Aprende, esteticamente -amplia o conhecer e lança o conhecedor em busca de novos conheceres.

Aprendemos a aprender!

Os jovens em conflito com a lei, na sua grande maioria, fizeram parte, ou foram usados, ainda que de uma forma subordinada e sem nenhum poder de decisão, de um ou de outro Comando do tráfico de drogas e, em alguns casos, continuam essas pertenças no confinamento, separados em espaços prisionais. Temos que compreender que esses jovens viveram em falsa liberdade dentro do duramente estruturado mundo moral imperativo do tráfico que já cerceava suas possibilidades de escolha e determinava o seu futuro.

Sua percepção do mundo e dos valores desse mundo era intransitiva e inquestionável: tudo era assim e assim tinha que ser. Walkie-talkie sem over, sem câmbio: mão única! O jovem recebia mensagens e informações, recebia ordens peremptórias e tinha que obedecer -tinha que aceitar a vida como ela é: aquela que o tráfico queria que fosse. Exatamente o contrário do que propõe o Teatro do Oprimido, que propõe o conhecimento e a escolha.

No educandário, presídio, reformatório, ou seja qual for seu nome de batismo, essa visão do mundo apenas se confirma: na maioria dos casos, aí o jovem encontra a mesma violência, o mesmo autoritarismo, a mesma imperatividade: abaixa a cabeça e leva pancada (12). No entanto, a função dessas instituições deveria ser o contrário; sua vocação é a escola, o ensino, o aprendizado. O jovem recebeu uma Pena Judicial: foi condenado ao cerceamento da sua liberdade no espaço. Aqui, recebe a Pena Carcerária: é condenado à desestruturação do seu tempo, no qual, teoricamente, seria livre, e que deveria ser usado para o seu crescimento intelectual, artístico, humano.

Temos que ampliar nosso método de trabalho, que tem sido predominantemente teatral: temos que imaginar um Projeto de Educação Estética do Oprimido que inclua a ativação de neurônios sensoriais através do ensino subjuntivo das artes plásticas -olhar e ver-, e da música -ouvir e escutar.

O estímulo neurônico que se faz em uma área cerebral é extensivo a todas as áreas circunvizinhas, não se restringe apenas àquelas diretamente ativadas: os acordes de violão desenvolvem potencialidades visuais e não apenas auditivas. Campeões de xadrez estudam música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias.

Os neurônios do cérebro são as mais importantes de todo o sistema nervoso e de todas as células humanas, segundo a hipótese de que, neles, acontece a coexistência dos sentidos com a razão, das sensações com o pensamento, do concreto com o abstrato: são dialógicos e dialéticos. São neurônios estéticos, no sentido de que a percepção estética incorpora a razão e a emoção, e não apenas as sensações! (13)

Da mesma forma que o esporte expande as possibilidades do corpo, a Arte expande as do espírito.

As sementes deste Projeto Estético já estão no próprio Arsenal do Teatro do Oprimido -as Técnicas e os Jogos de Imagem já são Artes Plásticas- falta extrapolá-las para a obra de arte concreta; as Técnicas e os Jogos de Ritmos já são música -falta transformá-los em canções e sinfonias; as improvisações já produzem literatura: falta concretizá-la em poemas e narrativas.

Atenção: não se trata de ensinar Solfejo e Canto Orfeônico aos jovens, nem obrigá-los, empertigados, a cantar a segunda parte do Hino Nacional, como fui eu martirizado na minha infância, mas sim de desenvolver a musicalidade que já possuem. Não se trata de organizar um Curso Supletivo de Arte que venha remediar carências da infância. Não se trata de ensinar desenho, cor e traço para que desenhem estátuas gregas ou modelos nus, como na Faculdade, mas sim de ajudá-los a ampliar suas próprias sensibilidades, suas já existentes tendências e embrionários conhecimentos (14).

Buscamos o Belo, como qualquer artista. O Belo de Hegel: o luzir da verdade através dos meios sensoriais. A verdade que se esconde atrás das aparências. Buscamos a Cultura, não só para compreender e fruir a Cultura alheia -isto é, a Erudição, que é o conhecimento de outras Culturas!- mas sim para desenvolver a nossa própria Cultura.

Buscamos o Belo que se esconde no coração de cada cidadão, pois cada cidadão é um artista.

É importante para todos os jovens -em conflito com a lei ou em sadia convivência- o conhecimento da cultura de outros povos e de outras épocas, ou de estruturas artísticas completas e bem acabadas, mesmo quando muito afastadas de si. Moças e moços de uma comunidade pobre que aprendam a dançar Valsa com rigor austríaco ou Minueto com elegância francesa, algo aprendem e são esteticamente estimulados, mesmo que a "nobreza e o equilíbrio dos movimentos" (15) desta dança nada tenham a ver com as suas vidas cotidianas. Se, fielmente, encenam uma peça de Molière ou, com igual fidelidade, tocam um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar os horizontes da sua percepção -esse aprendizado é maravilhoso.

Temos que compreender, no entanto, que nenhuma estrutura de dança, música ou teatro é inocente ou vazia: todas contém uma visão do mundo que, através da forma artística, é assimilada e incorporada por quem as pratica.

Camponeses europeus não dançavam Valsas nem Minuetos, que só eram compatíveis com o lazer dos ricos. É ótimo que saibamos dançar Minuetos e Valsas, e melhor ainda que descubramos a dança que o nosso corpo é capaz de criar (16).

Se não criarmos a nossa própria cultura seremos obedientes e servis a outras culturas. Se criarmos a nossa, as outras culturas só poderão alargar o nosso conhecimento e a nossa sensibilidade.

Tudo é uma questão de equilíbrio e de personalidade. O fato de ser quem sou -se sei quem sou!- não me impede de admirar quem são os outros, e o que fazem. Se não sei quem sou... serei cópia.

A Educação Estética do Oprimido é uma proposta que trata de ajudar esses jovens -ou adultos- a descobrir a Arte descobrindo a sua arte e, nela, se descobrindo; a descobrir o mundo descobrindo o seu mundo e, nele, se descobrindo.

O teatro, usualmente, conjuga a realidade no tempo Presente do Modo Indicativo -"Eu faço!" A TV, no Modo Imperativo: -"Faça!" No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no Modo Subjuntivo, em dois tempos: no tempo Pretérito Imperfeito -"...se eu fizesse?" -ou Futuro- "...se eu fizer?" No trabalho com os jovens, mais do que nunca, temos que ser Subjuntivos. Tudo será "se".

Subjuntivo -eis a palavra! O Teatro Subjuntivo -já na própria construção dos Modelos (17) que prepara o Teatro Fórum (que já é, por natureza, subjuntivo ao propor alternativas) -deve ser acompanhado pelo Teatro Legislativo (18) para que se extrapolem em leis, ações gerais ou atos localizados, as conclusões e os conhecimentos adquiridos durante o trabalho teatral.

O Teatro Subjuntivo é a extensão -à própria construção do Modelo- da dúvida, da comparação, da pluralidade de possibilidades de vida e de sociedade, da variedade de comportamentos e de caracterizações psicológicas.

É necessário ajudar os jovens a que construam, esteticamente, o mundo ético no qual vivem e a criarem imagens que o corporifiquem, para que possamos melhor entendê-lo e, depois, deixando-o cuidadosamente de lado, construir -sempre com esses mesmos jovens e não em lugar deles- outros mundos éticos Subjuntivos -"... e se?"- procurando igualmente entendê-los e compará-los com o triste mundo real onde habitam.

O Teatro Subjuntivo subjuntivisa todo o processo teatral e não apenas o Fórum.

Vamos, sim, encontrar obstáculos. Um deles -e não o menor- consiste no fato de que é essencial, ao Método do Teatro do Oprimido, a busca serena, sem pressa e sem atropelos: para nós, é importante que cada pessoa amadureça seguindo o seu próprio ritmo, segundo suas próprias possibilidades, necessidades e desejos. Não temos uma política de resultados que quantifique, sistematize e enumere conquistas e transformações pessoais e sociais. Não temos uma política de eventos, a não ser circunstanciais e como apêndices do nosso verdadeiro trabalho.

Por outro lado, é natural que os patrocinadores de qualquer projeto cultural queiram ver resultados em curto prazo, quantificá-los de forma objetiva, se possível em números, para avaliarem melhor a relação custo-benefício. Isto, tanto acontece com o financiamento governamental, como quando os projetos são patrocinados pela iniciativa privada.

Pelo terceiro lado, nossa indignação com as precárias condições que temos observado nos educandários nos incita a tentar uma ação rápida, urgente, direta. Queremos mudar tudo, já! Intervenção Shazan!

Infelizmente, não somos Super-Homens nem Mulheres-Maravilha capazes de resolver todos os problemas e aplacar todas as ansiedades, saciando todas as sedes! Que pena... Mas podemos tentar ou, pelo menos, ir até um pouco além do nosso real poder.

Não é o que dizemos sempre, que todos nós somos mais e melhores do que pensamos ser? Então?

Sejamos otimistas.


Notas

1. "El arroyo de la sierra me complace más que el mar" -("O riacho da montanha me agrada mais que o mar")- versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário cubano, herói da guerra de libertação nacional contra os espanhóis. Volver

2. Os Conjuntos se referem apenas à percepção sensorial do mundo e se organizam em Estruturas ficcionais, imaginárias, que se constituem através da intervenção da palavra e dos símbolos -da palavra gramatical, como Léxico mas, sobretudo, como Sintaxe. Estruturas são Conjuntos de Conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: Estrutura Moral, Política, Social, Familiar, Ritual, Comportamental, etc.

As Estruturas se sustentam pelas relações de Poder, que representam, no campo humano e animal, o mesmo papel das forças do universo (gravitacional, eletromagnética, etc.) Todas as relações humanas são estruturadas pelas relações de Poder em suas variadas formas -políticas, sociais, psicológicas, culturais, carismáticas, sexuais, etc.- que determinam valores. Volver

3. Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes porque, na segunda, já serão outras águas que por ele estarão passando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo que ninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão sempre em movimento: em que água estará entrando?

Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa? Volver

4. Os significados dos significantes (que são as palavras), são menos importantes do que o significado de significar: quando significo algo a alguém, além dos significantes (as palavras) que pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu corpo: este conjunto de significantes integra o meu significar que não está presente em nenhum dos elementos que o compõem -apenas no Conjunto de todos eles. Os Conjuntos possuem qualidades de que suas partes carecem. Volver

5. Ao encontrar o Ser em sua unicidade -o artista, ao produzir sua obra; o espectador, ao frui-la; ou o amante, ao amar- defrontam-se com o Infinito. O objeto do amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é um Conjunto, como veremos mais adiante: aí reside o Infinito, que é o encontro impossível em que cada Unicidade é um novo Universo (Nota 9).

Algumas formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas de Loucura fazem quase o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem, desesperados, na percepção de cada um dos seres e coisas que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos Conjuntos. Ou formam Conjuntos de autonomia própria, que não são referenciáveis nem ao real nem à nossa percepção coletiva. Volver

6. Nessa busca encontra o Uno ou a maneira Una de criar novos Conjuntos que só o artista pôde perceber -à moda do louco- mas que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nos encontramos a nós mesmos, como Fernando Pessoa: "Ninguém a outro ama, se não que ama o que de si há nele, ou é suposto!" Volver

7. Da mesma forma que o amor não é "...imortal, posto que é chama..." (Vinicius de Moraes) também a fruição da obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos encontramos. Podemos descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la. Volver

8. A árvore não deve esconder a floresta, como disse o poeta, mas a floresta também não tem o direito de esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo de flores, nem cada pétala de cada flor. Volver

9. Quando, através do Amor ou da Arte, penetramos na unicidade de um Ser, penetramos no Infinito. Seria tolo imaginar que o Infinito seria apenas infinito para fora e para longe... Se é verdade que o Infinito é, ou existe, não pode tão-pouco ter limites para dentro: o Infinito não é apenas Infinito para além das estrelas e das Galáxias, mas também para dentro de cada átomo do nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente igual ao infinitamente pequeno. O Infinito destrói os conceitos de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está muito perto porque tudo é muito longe, e é pequeno por ser tão grande.

Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas e de Sistemas Planetários, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no mesmo erro que Parmênides (515 A.C. - ?), o filósofo grego que afirmava que o Universo era infinito em todas as direções e, portanto, teria um ponto de partida, e seria esférico... Ora, se começava em um ponto determinado e tinha uma forma precisa -a esfera- seria finito, pois a forma é o limite do Ser com o Não-Ser e, como sabemos, o Não-Ser não é... Não é mesmo?

Toda unidade é múltipla, em todos os sentidos e em todas as direções -isso é o Infinito. Os Conjuntos conjugam Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo (o in-divisível) divide-se em prótons, nêutrons, elétrons, etc. Cada próton... O Infinito é a vertigem do pensamento! Volver

10. A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas neurônios obrigou a Natureza a fazer uma exceção curiosa: todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio corpo e lhe dão sustentabilidade; na cabeça, porém, a ossatura envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma coisa de muito importante deve haver lá dentro. Volver

11. Instituição do governo estadual que, no Rio de Janeiro, se ocupa de fazer cumprir as determinações judiciais referentes a indivíduos menores de 18 anos em conflito com a lei. Volver

12. Um funcionário, quando aplica castigos corporais aos jovens, como costuma acontecer, viola o mesmo Código Penal que esses jovens violaram, viola a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição do país, que não permitem castigos corporais, cruéis ou degradantes: aqueles que assim se degradam -degradando, ofendendo física e moralmente aqueles a quem devia proteger- que autoridade podem ter para exercerem a sua autoridade? Volver

13. Os neurônios que me permitem mover o dedão do pé, esses são bem mais simples. Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda mas foi eleito Presidente da República, e passa bem; Roosevelt, já presidente, perdeu a capacidade motora de suas pernas, mas continuou dirigindo o seu país; o cientista Stephen Hawking, mesmo totalmente imobilizado em uma cadeira de rodas, continua escrevendo seus livros. Mas, se algum deles tivesse perdido um pedacinho de cérebro, como alguns presidentes famosos que nós conhecemos, o mundo estaria a beira de uma catástrofe, como de fato está. Volver

14. Quando o CTO começou suas atividades no Rio de Janeiro em 1986, em comunidades pobres, eram poucas -se é que existiam- as ONGs que se dedicavam a tarefas similares às nossas: hoje são muitas, e muitas são as que se dedicam a realizar, nas favelas e nos morros, programas artísticos semelhantes aos que já existem para a classe média, onde abundam cursos e estúdios que dizem preparar atores e bailarinos para a TV, vídeo e cinema. São comuns as reportagens jornalísticas sobre jovens de excepcional talento, revelados nos morros, que vão fazer carreira nas telenovelas, em geral em papéis de criados, marginais ou motoristas, ou de jovens bailarinos selecionados para continuar seus estudos em Nova York e até no Bolshoi de Moscou. Isso tem acontecido, é ótimo que aconteça, porém não é nossa função, nem faz parte dos nossos objetivos.

Essa aplicação mecânica, em comunidades pobres, dos mesmos programas e métodos que são utilizados pela classe média e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e o mesmo elogio ao mais capaz, ao excepcional: a ideologia do primeiro lugar, do campeão.

Nossa função, bem ao contrário, é preparar os participante dos nossos grupos para serem Multiplicadores de Arte, segundo a nossa máxima de que "Só aprende quem ensina!", levando em conta que nosso objetivo é atingir todo o tecido social e não apenas revelar talentos excepcionais. Volver

15. Definição do Aurélio. Volver

16. Julián Boal, em seu ensaio A Dança do Trabalho, cita pesquisadores que mostram que os movimentos realizados durante o trabalho foram, em muitos casos, a origem de danças mundialmente conhecidas, como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norte-americanos, quando passeavam no chão de madeira das casas dos seus senhores, calçando sapatos com ruidosas "ferradurinhas", ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos das bailarinas andaluzas dançando flamenco, originados nos movimentos de colher os frutos das árvores. Volver

17. Modelo -uma cena ou peça que serve de base para a discussão teatral, em que os spect-atores entram em cena, substituindo o protagonista, ensaiam alternativas à sua situação de opressão, intervêem com a originalidade do seu pensamento e da sua sensibilidade, e utilizam o mesmo Espaço Estético (palco, arena, picadeiro, espaço em uma rua ou praça) que usam os atores, e a mesma linguagem teatral. A esta forma de debate teatral dá-se o nome de Teatro-Fórum, uma das partes do teatro do Oprimido. Volver

18. Teatro Legislativo -forma do Teatro do Oprimido que busca inscrever na Lei os desejos da população organizada. Livro de Augusto Boal editado pela Civilização Brasileira. Volver