LA ESCENA IBEROAMERICANA. BRASIL
O TEATRO-COREOGRÁFICO DE SANDRO BORELLI

Sebastiao Milaré


Cena de A Metamorfose

Com o Grupo FAR-15, o coreógrafo Sandro Borelli estabelece seu inventário artístico através de um "processo kafkiano", aprimorando a idéia do "teatro-coreográfico".
Um artista passeia através das indecisões e perplexidades do meio artístico quando se coloca em pauta o gênero híbrido e jamais resolvido "teatro-dança" ou "dança-teatro". Esse artista é Sandro Borelli que, com o Grupo FAR-15, detonou importantes condutos cartesianos da informação e da narrativa. E o fez através da dança, mas com sentido estético teatral e a noção muito lúcida de não estar simplesmente contestando códigos, mas reivindicando para a Dança o direito ao Drama.
Na proposta de Sandro Borelli, dança-teatro (ou teatro-coreográfico, como ele prefere chamar) é um gênero onde a Dança dialoga com o Teatro. Isto o coloca numa tradição que vem de Isadora Duncan, de Kurt Jooss, de um povo transgressor, que correu na raia oposta à do Sistema, criticando-o e a ele contrapondo o ser humano com sua grandeza e sua miséria.
Do diálogo estabelecido por Sandro Borelli entre a Dança e o Teatro vai nascendo uma linguagem miscigenada, que tem fortes tonalidades dramáticas, mas é Dança, é coreografia: foi produzida por especificidades técnicas e criativas de coreógrafo. Ele, na verdade, não pretende responder a questões acadêmicas, nem provar teses pessoais sobre teatro-dança, apenas tenta comunicar-se com as pessoas do seu tempo, falando de coisas vivas deste momento histórico através da Dança e com um sentido aguçado de drama, mas sem se render a modismos. Não lhe interessa se os códigos são da última geração; interessa-lhe que se prestem à transformação e que sejam eficazes. Essa postura de pesquisador que tem projeto estético definido sempre foi perceptível ao longo da sua carreira.
Qualquer retrospecto dos trabalhos de Sandro Borelli indica a direção do seu pensamento, o propósito de investigar dentro de determinados princípios, tentando quebrar códigos expressivos e abrir na trama da coreografia espaços para o inusitado. Às vezes radicaliza a idéia, como a inserção do extremo naturalismo que fez em A Metamorfose, onde atores-baratas cospem abundantemente no rosto do barata-Gregor Samsa. Um recurso teatral de efeito fulminante, rico de signos e de questionamentos, uma verdadeira "ação dramática" - ou seja, recurso teatral que incide sobre o desenho coreográfico e lhe transforma as tonalidades, os volumes e o sentido.
Não há, na poética de Sandro Borelli, qualquer traço contínuo que implique preceito moral, reflexão sociológica, psicológica ou teológica com a função de conduzir a narrativa. Aliás, não existe a narrativa, no sentido do desenvolvimento dramatúrgico tradicional, apenas o ato de dissecar o conteúdo emocional e/ou espiritual de uma ação, de um gesto, de uma situação ou de uma atitude que seja índice de mistérios do drama humano.
O drama humano tem as ferramentas para a expressão divina e, ao voltar-se a ele, o dançarino Borelli transita entre orixás, mitos judaico-cristãos, pierrôs e prisioneiros; transita entre a divindade e a pessoa comum, procurando ver uma na outra. Sua poética vai se construindo nessa viagem e é levada a conseqüências notáveis pelo grupo que fundou em parceria com a dançarina Sônia Soares, o FAR-15.

 

O TEATRO-COREOGRÁFICO

Antes de fundar o Grupo FAR-15, todavia, foi longa a caminhada de Sandro Borelli.
Era garoto e morava em Santo André (cidade do ABCD paulista, a região mais industrializada do Brasil) quando começou a dançar. Natural desse cenário de lutas operárias e libertárias, Borelli traz em si o espírito contestatório, voltado para a renovação das linguagens como meio de renovação social.
Seu talento evidente o conduziu a elencos importantes, como o balé do Teatro Guaíra, em Curitiba, ou o Balé da Cidade de São Paulo, do qual foi bailarino e, mais tarde, coreógrafo. Levou-o, com patrocínio da Fundação Vitae, a uma residência no ADF, na Carolina do Norte (EEUU). Recebeu informações sobre a arte trabalhando com renomados coreógrafos e cresceu rapidamente como criador de imagens, mas as raízes no ABCD paulista talvez tenham sido determinantes para o seu caráter, tanto como cidadão quanto como artista.
Há uma permanente contradição na estética de Borelli, envolvendo simultaneamente a força bruta e o gesto delicado. E essa contradição está no âmago da experiência do cidadão metropolitano, que vê elevar-se o espírito para além das coisas materiais enquanto a realidade mais dura, objetiva, o prende ao concreto. Por isso, os movimentos do seu corpo contém a ambigüidade espírito-matéria. No olhar de Borelli, o ser humano está sempre se debatendo dentro da própria solidão - que é cósmica, é sideral, é absoluta. Passa por aí a inserção do drama na estrutura da Dança.
Na verdade, a tendência para o teatro chegou a Borelli junto com a dança. Nos primeiros tempos trabalhou com encenadores como Ulysses Cruz, Eliana Fonseca, Jorge Takla, e com teatro de animação no grupo Cidade Muda. Isto fez parte do aprendizado. Os exercícios como ator, manipulador de bonecos e diretor de movimentos cênicos ao mesmo tempo lhe deram noções consistentes da arte teatral e o ajudaram a consolidar suas idéias coreográficas, ampliaram-lhe os meios expressivos, colaboraram na busca da síntese dramática e na elaboração de uma "dramaturgia do corpo", que são características vigorosas do seu processo criativo.
Em atividade paralela à do FAR-15, teve oportunidade de dirigir um espetáculo onde a dança, a acrobacia aérea circense e o teatro constituíam os motores da expressão: Deadly. Produzido pelo Circo Mínimo, o trabalho unia os intérpretes-trapezistas Rodrigo Matheus e Débora Pope numa série de movimentos dramáticos inspirados na decadência afetiva de um casal corroído pelo vazio cotidiano. Participando do Festival de Edimburgo (1999), Deadly foi considerado pelo público o melhor espetáculo de "teatro físico" do Festival e recebeu o Total Theatre Awards
Na verdade, o tema do casal às voltas com o dia-a-dia, assim como a violência cotidiana, ele já havia abordado em três coreografias anteriores: Jardin de L´ Enfant, Cão Vadio e Pierrot de Veias. Com esses espetáculos, propunha desenvolver o "teatro-coreográfico", evidenciando nesse jogo de palavras o espírito da linguagem que pesquisava: algo que tivesse o poder dramático do teatro, mas que fosse essencialmente coreografia.
O mais audacioso trabalho dessa fase foi Pierrot de Veias (1995), com a Companhia de Dança de Diadema. Desde a perspectiva de que o Pierrot "é um perdedor por excelência", Borelli o propõe sob diversos ângulos: idealista, louco romântico, apaixonado, anjo caído, ou na pele de diferentes seres anônimos que vivem à margem da sociedade de consumo. Desse modo, Pierrot pode ser qualquer habitante da cidade operária do ABCD paulista (na sigla, Diadema é o D) à qual pertence essa Companhia de Dança. À crua realidade do desemprego, do subemprego, das desigualdades sociais gritantes, a figura do Pierrot contrapõe o sonho e, para além do sonho, o exercício da imaginação.
Na obra de estréia do Grupo FAR-15, Ifá - Se Querem Gritar para o Mundo... (1997), Borelli avança na constituição da linguagem, distanciando-se ainda mais do balé clássico, no qual se formou, e utilizando na construção do movimento coreográfico ferramentas da sua experiência de atleta. Isso o leva à definição de elucubrações líricas, com riqueza de atitudes clássicas, induzindo o olhar onírico, em brutal contraponto a gestos cortantes, como os de luta marcial, o quê faz a sensibilidade do espectador despencar do sonho para a dura realidade dos dias que correm. Coloca-se dessa forma o conflito - essência do drama - como gestor da coreografia. O gesto nasce sempre e necessariamente da contradição e do conseqüente conflito.
No candomblé, Ifá diz respeito ao Oráculo que preside o jogo de búzios, uma forma de ler o mundo e prever o futuro ao alcance de qualquer fiel. Refere-se, portanto, ao pensamento arcaico, aos arquétipos e ao inconsciente coletivo. O tema permite a Borelli passear por fragmentos de dramas cotidianos, sejam domésticos ou coletivos, incidindo em ritos de passagem como o casamento, juntando orixás a santos católicos, olhando a realidade das ruas em oposição aos sonhos.
Para o segundo trabalho do FAR-15, Borelli buscou inspiração em obra escrita originalmente para teatro: A Solidão Proclamada, de Sebastião Milaré. Colocando em cena uma dançarina (Sônia Soares) e uma atriz (Christina Beluomini), explorou o ponto de confluência das formas interpretativas de ambas. A atriz dança na busca de expressar o drama e a dançarina importa para seu corpo esse drama, movendo-se ambas em permanente e insolúvel tensão. (O espetáculo participou do Mercocidade em Buenos Aires, 1998).
Em seguida, Borelli recorre a outro texto dramático - Bent, de Martin Sherman - para se aprofundar na trama teatral e, como alquimista, transforma-la em coreografia, à qual deu o título Bent - O Canto Preso (1999 - estreou no Festival de Teatro de Curitiba). Na surpreendente adaptação da peça teatral, o elenco integrado por Borelli, Ricardo Freire, Sônia Soares e Christina Beluomini povoa o palco com as figuras de um campo de concentração. O repressor e o reprimido, o carrasco e a vítima surgem como arquétipos, pois nessa fase de apuração do teatro-coreográfico, a psicologia pessoal sucumbe à atuação dos arquétipos. E a narrativa dramática convencional igualmente desaparece. As questões colocadas na peça de Sherman - homossexuais em campo de concentração, na Alemanha, durante a II Guerra, sendo dizimados como dizimados eram, lá mesmo, os judeus - surgiam em traços primitivos, esquemáticos, que davam origem a movimentos coreográficos; por sua vez, esses movimentos funcionavam como meio de reflexão sobre aquele fato ou aquela emoção, caminhando pelo contraditório.
Pela segunda vez Borelli ganhou uma Bolsa Vitae de Artes, agora para a pesquisa e criação de uma coreografia sobre insanidade mental, que resultou em Jardim de Tântalo (2001). Acentua-se a "dramaturgia corporal" nesse espetáculo, veiculando através do movimento a idéia, a observação e a emoção sobre a vivência humana em ambientes dominados pela insanidade. O próprio tema impulsiona a criação de espaços poéticos de rara beleza e grande intensidade dramática. A idéia de um teatro-coreográfico mostrava-se plenamente concretizada.

 

O TEATRO DO GESTO

Um texto de divulgação do grupo afirma que para o FAR-15 a dança é obra em constante gestação, onde a certeza é substituída por alguns vetores: a fusão com outras artes, a recusa de soluções lineares e a transformação do movimento não em narrativas, mas em signos estruturalmente prisioneiros de ambigüidade O desejo obsessivo de questionar as contradições e incertezas da existência humana nutre o trabalho de Sandro Borelli, coreógrafo do grupo. A cada espetáculo uma nova proposta para entender o limite das possibilidades na movimentação, mesclando violência e prazer, leveza e dor. Perfeita síntese da ideologia que orienta a investigação estética do grupo e que, nos últimos dois anos, foi aplicada na exploração do universo de Kafka.
Antes disso, todavia, estreou Kasulo (2002 - no mesmo ano, o espetáculo foi visto no Festival Internacional de Lima, Peru), bela e poderosa reflexão sobre a linguagem já pesquisada e sistematizada pelo FAR-15. Um olhar apressado poderia entender o espetáculo como simples "compilação" de movimentos coreográficos pertencentes a obras do repertório do grupo. E, de fato, foi essa a procedência do material estético. Mas, a idéia de "compilação" se desvanece ante a interação orgânica desses movimentos. As citações transformam-se em parágrafos do discurso coreográfico, que é coerente e cheio de matizes. Assim, Kasulo surge como uma espécie de "inventário artístico" do FAR-15. Inventário que se desdobrou nas obras seguintes, sobre temas kafkianos.
Com o prêmio EnCena-Brasil, do Ministério da Cultura, e com a residência concedida ao grupo pela Oficina "Oswald de Andrade", da Secretaria de Estado da Cultura, no segundo semestre de 2002 o FAR-15 criou a versão dançada de A Metamorfose.
A história de Gregor Samsa, que um dia acordou metamorfoseado em barata, deu a Borelli a possibilidade de "questionar as contradições e incertezas da existência humana". A narrativa desaparece em movimentos obsessivos que discutem, no âmbito da fisicalidade, a sensação de "ser barata". O corpo traduz os sentimentos de Gregor por meio de rebuscada técnica coreográfica, que leva a uma angustiante visão da catástrofe humana. Não porque o personagem se transformou numa barata, mas porque ao acordar naquele dia percebeu-se tão semelhante a uma barata como o homem se assemelha à imagem de Deus. Profanando a divindade, a idéia nos coloca frente aos imensos mistérios da vida e da morte.
Com A Metamorfose Borelli alcança o perfeito equilíbrio entre drama e coreografia, pensamento e gesto dramático. Seu teatro-coreográfico é, de fato, o teatro do gesto. A pesquisa do movimento o conduz a um mimetismo exemplar, onde não se pode identificar as coisas pelo que se diz que elas são, mas pelo que as coisas verdadeiramente são no plano metafísico. Não se trata, portanto, do gesto descritivo, ou da imitação, mas de explorar o gesto como linguagem poderosa, através da qual se deslindam mistérios da alma humana. Os movimentos repetitivos de Gregor Samsa, agitando-se na dança que afirma a barata no lugar do homem, não se prestam a simplesmente ilustrar a idéia da metamorfose, mas a traduzir sensações, observar o terror, a ansiedade, a dor humana frente a situações que fogem completamente ao controle do homem.
O drama da exploração do homem pelo homem e da alienação do indivíduo, que é o fundamento da obra de Kafka, está inteiro em cena, mas não como narrativa e sim como reações físicas. Quando todos os dançarinos assumem a metamorfose, multiplicando Gregor Samsa, nota-se que, na verdade, o caso dele não é uma aberração, mas inerente à condição humana em certos extratos sociais: os causadores da desgraça não se mostram, apenas as vítimas denunciam a sua existência.
Enquanto elaborava com o grupo a adaptação de outra novela de Franz Kafka, O Processo, com o prêmio estímulo oferecido pelo Centro Cultural São Paulo através do concurso "Pernas e Braços pela Cidade", Borelli realizou o espetáculo solo O Abutre (2003), inspirado em breve conto de Kafka.
A fábula reporta ao suplício de Prometeu. O personagem é devorado pelo abutre e quando surge uma possibilidade de salvação, o abutre, num vôo rasante mergulha por sua boca adentro, afogando-se nas suas entranhas. A impossibilidade da salvação e a angústia decorrente são os elementos dramáticos que Borelli explora numa construção coreográfica limpa, ligada mais à natureza abstrata da Dança do que à densidade objetiva do drama. Isso não quer dizer, contudo, que está abandonando o drama, mas fundindo-o cada vez mais profundamente no movimento, no gesto.
A mesma fusão estabelece a base para a construção de O Processo. O drama de Josef K., como o de Gregor Samsa, não é uma aberração, mas o despertar da consciência para as condições de vida impostas ao indivíduo e à coletividade. O processo vai triturando as pessoas, que cumprem os rituais e se vêem impotentes para mudar o curso do destino. Os movimentos parecem emulados do exterior para o interior, como o abutre que mergulha garganta abaixo da sua vítima. São questionamentos para os quais os personagens jamais encontram respostas e, por isso, vagam sem norte por um mundo sempre hostil. O gesto é aqui tratado como última fronteira, última possibilidade de comunicação entre os indivíduos.
Com o estudo sobre a obra de Kafka, Sandro Borelli e o Grupo FAR-15 (hoje integrado pelo coreógrafo e mais Sônia Soares, Roberto de Alencar, Marcos Suchara, Veridiana Zurita, Renata Aspesi) alcançaram o pleno amadurecimento artístico. As tentativas de se fazer dança-teatro no Brasil quase sempre se perdem por não se solucionarem nem como coreografia nem como dramaturgia. A investigação metódica e vigorosa de Sandro Borelli foi bastante longe na fusão do drama ao movimento físico, resultando numa exemplar linguagem. A estréia de O Processo aconteceu no VIGA Espaço Cênico, que é agora sede das atividades do grupo. E, certamente, a expectativa sobre o futuro do FAR-15 é a melhor possível, abrigando em si o desenvolvimento de uma linhagem estética de altíssimo nível.