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Para se falar sobre o tema de hoje, em primeiro lugar é necessário definir os seus dois primeiros termos. O que é a Arte e o que é a Paixão? O sofrimento... esse não é preciso definir: todo mundo sabe o que é. Arte pode ser entendida de muitas maneiras. Eu prefiro dizer que a Arte, qualquer arte, é sempre um conjunto de sistemas sensoriais que permitem aos seres humanos – e só a eles! – fazerem “representações” do real. A arte não “reproduz” o real: ela o “representa”. Mesmo o teatro, mesmo no seu mais extremo estilo naturalista, mesmo o diretor francês Antoine que, no começo do século, ao encenar uma peça cuja ação se passava em um açougue, comprava todos os dias carne fresca, mesmo Antoine criava uma distância estética: de um lado, o palco e seus limites, suas formas, suas cores; do outro, a presença dos espectadores cotidianos vivendo sua própria realidade – esses dois mundos não eram interpenetráveis, eram mundos aparte: um era a imagem do real e, o outro, a realidade da imagem. Mesmo os primeiros pintores rupestres que, nos tetos de suas cavernas, pintavam bisontes, leões e outros animais ferozes, mesmo eles sabiam que uma coisa é o real e, outra, bem outra, sua representação pictórica: sem medo, o pintor cavernícola se aproximava do chifre da fera pintada mas, com cuidado, fugia assustado do seu modelo, solto no descampado. As artes são representações do real, não são o real: mas, que real é esse que elas representam? Existem artes, como a música, que organizam o som e o silêncio, no tempo. Existem artes, como a pintura, que organizam a forma e a cor, no espaço. E existem artes, como o teatro, que organizam ações humanas, no espaço e no tempo. Se nisto consiste a Arte – na organização e na representação do real – e se o teatro organiza e representa ações humanas – quais desta ações serão dignas da representação teatral? Evidentemente, só aquelas nas quais os seres humanos revelam suas paixões. Lope de Veja, escritor espanhol do Século de Ouro, costumava dizer que o essencial ao teatro são apenas dois atores, um tablado e uma paixão. Mas... o que é a Paixão? A Paixão, como a Arte, pode ser definida de muitas maneiras, mas eu prefiro dizer que a paixão é um conjunto, ou é, individualmente, cada um dos sentimentos extremados dos quais o ser humano é capaz. O amor e o ódio, a busca de um ideal e a solidariedade, a curiosidade científica e a realização esportiva, podem ser paixões, se forem extremos. Até o artista - quando o é! - é um apaixonado. É preciso reabilitar a Paixão, restaurar o seu sentido primeiro de força vital, danificado pela semântica que faz da mesma palavra grega “pathos” a origem de “paixão” e de “patologia”. Paixão não é sofrimento, não é doença: é vida! A Paixão do Cristo não foram as doze quedas, percalços no caminho do Calvário: Paixão era a sua determinação em realizar o desejo do Pai e salvar o ser humano. Quem vos fala não é um religioso: é um apaixonado. Sou apaixonado pelas paixões, e juro que não são elas que causam meu sofrimento: são os obstáculos que entre mim e elas são erguidos. Não é a paixão que nutrem um pelo outro, Romeu e Julieta, que os faz sofrer e que lhes traz a morte: é o ódio voraz entre Montequios e Capuletos, suas famílias latifundiárias, seus sequazes e capangas, que lutam por mais terra e mais poder. O obstáculo faz sofrer: a paixão vivifica! Foi a paixão do Chê Guevara que o levou à felicidade cubana; foram os obstáculos imperialistas e globalizantes que o levaram à morte boliviana. Foi a paixão do Tiradentes que o levou à Inconfidência Mineira; foi D. Maria, a Louca, que o levou à forca! A paixão faz sofrer, é certo, porém não porque seja paixão, mas por é libertária! O ser humano, na sua luta inclemente contra a Natureza, na sua luta pela sobrevivência e pelo gozo, pelo desejo de fruir a vida tão fugaz – nosso direito e dever! - torna-se extremado: o ser humano é urgente, pois que é mortal, e as paixões existem, muitas e variadas. Só uma, porém, será a “paixão trágica”: aquela na qual o risco consciente que corre o apaixonado é a vida. Ele ou ela preza o objeto da sua paixão, mais do que preza a própria vida. Mas não basta o risco consciente para que uma paixão seja trágica, pois existem igualmente as arriscadas paixões gozosas, aquelas que causam felicidade no seu exercício, embora menos ditosas no seu término. Para que uma paixão seja trágica, é obrigatório que o seu objeto seja necessário – e não apenas caprichoso! - e que seja impossível obtê-lo. Antígone é uma mulher apaixonada pelo direito da família: enterrar seus irmãos mortos, os que lutaram contra sua própria pátria – eram, porém, seus irmãos! – é necessário... e é impossível: Creonte, apaixonado pelo direito do Estado, não irá permiti-lo! Assim, a paixão, para que seja trágica, é obrigatório que o risco seja a vida, seu objeto necessário, e a possibilidade de obtê-lo, nula. No extremo oposto à Paixão Trágica, está o Amor Palhaço. Um sentimento é extremado quando não teme a morte. O Palhaço não chega a tanto, ele não enfrenta o mundo: ele apenas o desorganiza. Através do seu próprio ridículo, expõe o ridículo dos outros – o nosso! – que, sem o palhaço, passaria desapercebido, tão habituados estamos, tão resignados! Estamos acostumados ao nosso ridículo: já não o vemos. Somos todos palhaços, mas o mundo inteiro é um picadeiro, não existe platéia neste circo: ninguém nos vê. Eis que surge o palhaço – e isto é importante! – surge vestido de palhaço: é ele a nossa consciência crítica! Nós o aceitamos porque tem o nariz vermelho! O que caracteriza a não tragicidade do Palhaço, além da economia e parcimônia dos seus atos, são os próprios meios inadequados ou insuficientes que emprega para obter o objeto do seu amor que, além do mais, não é necessário. O palhaço apenas cutuca seu adversário com a bengala, estica o pé para que tropece, foge do seu olhar e, às suas costas, reaparece: jamais puxa o gatilho, jamais empunha o punhal! Colombina não é uma impossibilidade para Pierrô, mas também não é necessária – outras dançarinas existem, ela apenas faz parte de um coro, não é Desdêmona nem Julieta; o herói trágico, ao contrário, não existe sem o que busca! Romeu não existiria se apenas desejasse a cama de Rosalinda e seus prazeres. Romeu é mais: é um apaixonado. Romeu... é Julieta! Otelo é... Desdêmona! A falta de determinação do palhaço branco, a sua falta de entrega total e plena, irremissível, é o que o impede de correr os riscos maiores que correm Romeu e Otelo; a melancólica tristeza de Pierrô e o seu caracter sonhador, reflexivo e distante, afastam a bailarina, que baila e rodopia em busca do desenvolto Arlequim, que tem os pés no chão, e nela. Nem Pierrô, nem Charlô, nosso Carlitos, nenhum dos dois - que são o mesmo! - se concentram na busca do seu objeto, nem por ele oferecem a vida – quando muito, a face ou o trazeiro e, mesmo assim, por descuido. Pierrô, no seu vagar impreciso, há de sempre encontrar outra Colombina; e, ao encontrá-la, perdê-la: eis o destino dos que amam sem paixão! Somos apaixonados – por que, então, não somos trágicos? Ora! Nossa paixão, no mais das vezes, nem se mostra nem se proclama. Passamos a vida estrangulando paixões, nossas e alheias. Disfarçando-as, escondendo-as – vestindo-as com roupas de passeio, às vezes, paletó e gravata, longos vestidos e saias curtas. A paixão verdadeira, no entanto, é nua – porque é total e plena, insubmissa! – não pode respeitar regras, horários, conveniências, etiquetas. Explode! Arrebenta! O herói trágico, o que traz em si a paixão trágica, foi revelado e desmontado por Aristóteles, cinco séculos antes de Cristo, em um momento particularmente importante para o teatro: a sua gênese. Foi sua paixão que ajudou o teatro grego a cumprir sua função repressiva, ou - digamos suavemente - moderadora e homeopática: similia similibus curantur. Com a paixão, destruía-se a paixão. Se não, vejamos: No fim da vindima, na Grécia pré-Helênica, quando os primeiros vinhos começavam a ser bebidos, depois da colheita, era natural que os camponeses, bêbedos, destravassem a língua, dançando de pernas bambas; era natural que, depois do trabalho silencioso, cantassem desafinados os acontecimentos políticos e sociais, sua revolta; natural que fossem além dos limites que era imperativo respeitar, além do respeito que era necessário demonstrar. Sempre que se manifesta a liberdade de palavra – principalmente quando acompanhada de atos que a complementam, explicam e justificam! - na Grécia Antiga como no Brasil de hoje, uma forma sutil ou grosseira de censura sempre surge autoritária. Lá, naquela época já distante, surgiram os Mecenas tão amáveis que, aproveitando-se de uma grega Lei de Incentivo à Cultura – ou à sonegação fiscal, como querem os mais realistas! – passaram a financiar espetáculos de “alto nível” chamados de “Cantos Ditirâmbicos” – verdadeiros desfiles de Carnaval, com coreografia e poema previamente censurados e as vozes afinadas pelo diapasão dos Mecenas. Esses blocos, mistura de carnaval e liturgia, percorriam os campos e a cidade, e terminavam em uma espécie de Praça da Apoteose, diante das autoridades civis, militares, econômicas e religiosas – a fina flor. Um dos melhores carnavalescos litúrgicos dessa época chamava-se Thespis, obediente poeta e coreógrafo. Um dia, porém, ele, que era um apaixonado, diante da tribuna das figuras oficiais, não pode conter sua paixão, sua revolta, seu amor à verdade, saltou do Coro e começou a responder, em prosa, aos versos que ele mesmo compusera; em movimentos livres, à coreografia que ele mesmo desenhara. E disse, apaixonadamente, disse o que pensava: refutou a religião, a ordem, a lei. Diante da fina flor, da nata, do poder! Coragem! Na platéia estava Sólon, o grande estadista, que o repreendeu pelas liberdades tomadas. Quando Thespis argumentou que o que dissera não era o seu próprio pensamento mas sim o de um “Personagem” (Thespis inventou o “personagem” ao qual deu o nome de “Protagonista”!), Sólon, que não era tolo, respondeu: “O que importa não é o que você disse, mas sim que você mostrou que é possível dizer. Não importa que a sua discordância seja certa ou errada: você mostrou que é possível discordar! E isto é muito perigoso, isto o povo não deve ficar sabendo nunca. Imagine só se os camponeses descobrem que podem andar por aí invadindo terras improdutivas? Seria um desastre: aqui na Grécia Antiga, meu caro Thespis, os camponeses devem pagar aos senhores da terra quatro quintos de tudo o que plantam, pagar a nós, e assim deve continuar por muitos e muitos séculos ainda... amém. Se, um dia, eles descobrirem que podem plantar sozinhos sem nos pedirem permissão, onde é que nós vamos parar, meu querido? Vamos viver do quê? Até o Diabo vai se recusar a amassar o nosso pão! Ah, isso não... Não, não!” Thespis insistiu dizendo que o que ele tinha feito, saltando fora do Coro, teria sido apenas representar um Outro que não ele, teria fingido ser quem não era, e a isto chamou - em grego, naturalmente, que era a língua que ele dominava com perfeição - chamou “Hipocrisia”, isto é, a arte do ator, aquele que finge ser quem não é – ou, na minha opinião, aquele que revela personagens que traz escondidos! Assim, fica provado que o Teatro e a Hipocrisia nasceram no mesmo dia. Sólon, dando um belo exemplo, esclareceu que não importa o que os homens fazem com o fogo: o crime de Prometeu foi o de mostrar que basta um fósforo! Ou duas pedras. Daí por diante, Thespis teve que escrever seu texto e deixar que suas improvisações fossem censuradas. De qualquer maneira, para alguma coisa serviu a sua inesperada desobediência civil: para inventar o teatro. Já foi alguma coisa! Mas o nosso Aristóteles, que era bem mais inteligente do que o poderoso Sólon, e tão reacionário como ele, inventou um sistema trágico coercitivo que parece ter sido imaginado expressamente para unir os três termos desta mesa redonda: a arte, a paixão e o sofrimento. Aristóteles já pensava neste Seminário campineiro, tenho certeza. Primeiro, achou por bem permitir que o Protagonista, em contraposição ao Coro oficial - que transmitia quase sempre o pensamento do poder vigente - exacerbasse suas críticas e se comportasse de maneira rebelde, altaneira e subversiva. Que libertasse suas paixões! Que desafiasse o Estado e até Zeus! Aristóteles havia observado que esse comportamento desrespeitoso, na tragédia grega, começava sempre por ser vitorioso, estimulando os espectadores a, vicariamente, rebelar-se também: o torcedor na arquibancada torce pelo seu time e chuta o vento: não faz o gol, mas sente alívio. A platéia, num primeiro momento, através da “empatia” que o acorrenta ao Protagonista, tornava-se como ele, criminosa, libertando suas próprias paixões - com a vantagem de não cometer nenhum crime! Não importava: era preciso dar vazão às paixões reprimidas e não afogá-las desde o início. Como hoje, nos filmes de Hollywood, os bandidos não são nunca presos e trancafiados na cadeia logo na primeira cena, mas, ao contrário, começam bem sucedidos nos seus roubos e assassinatos, despertando assim, em nós, nossos ladrões e assassinos que trazemos escondidos no âmago nas nossas mais íntimas pessoas, na explosiva caldeira do nosso coração. No sistema de Aristóteles, depois da orgia desrespeitosa, chega imperativamente o momento que ele chamou de “Peripécia”: o destino vitorioso do criminoso, do fora da lei, do rebelde insubmisso, dá uma virada de 180 graus e começa a sua decadência, rumo à morte, à cegueira física ou à perda de um ente querido e bem amado: é a “Catástrofe”, para usar o seu termo técnico. Nessa queda, surge o obrigatório sofrimento que é tanto maior e mais intenso porque vem acompanhado pelo arrependimento que, para Aristóteles, que o batizou de “Anagnorisis”, consistia no reconhecimento da verdade, e a verdade era o Estado, era a Religião, era o Sistema tal como existia e ao qual era necessário obedecer. O Protagonista sofria a “Catástrofe” e este sofrimento provocava na platéia a “Catarse” – isto é, a purificação da falha trágica, da “Harmatia”, que, evidentemente, era uma paixão destruidora. Ou revolucionária, tudo depende do nosso ponto de vista. Essa purificação, essa “catarse”, pode ser também entendida como mutilação. Porque o sistema de Aristóteles é útil se acreditarmos que a sociedade é perfeita; quando vivemos, porém, nesta paródia de democracia, nossa Harmatia pode não ser um vício mas sim nossa maior virtude; nossa rebeldia, santa; nossa desobediência, nosso maior ato de cidadania, e o seu desaparecimento pode ser uma mutilação – nosso desejo decepado! Aristóteles, um filósofo, escreveu sobre a arte dos poetas trágicos, e a sua própria “Arte” consiste em propor que seja utilizada a “Paixão” para que o espectador tenha a permissão de pecar, transgredir, rebelar-se, desde que depois se arrependa e, através de um intenso “Sofrimento”, chegue ao conhecimento verdadeiro e jure a si mesmo nunca mais sair da linha. Assim, Aristóteles, pensando em Campinas, juntou essas três palavras: a Arte, a Paixão e o Sofrimento. Eu, pensando as três, penso o contrário: penso que nossas paixões devem ser estimuladas e acariciadas, para que, como o apaixonado rio que transborda, procurem o mar! |
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