HACER TEATRO HOY
A CRIAÇÃO ARTÍSTICA E A DIVINA

Por Augusto Boal

Tempos atrás, um poeta neozelandês, religioso, quis se aprofundar no estudo da Bíblia... e levou um susto. Logo no  primeiro livro, o Gênese, está escrito que, no primeiro dia da Criação, Deus criou a luz para poder ver com nitidez o que fazia e não se arrepender depois. Fez-se a luz e Deus viu que a luz era boa. Iluminava. Até aí, tudo bem.

No segundo dia, criou o firmamento separado das águas,  e lhe deu o nome de Céu, e viu que era bom; ótimo! Mais animado, no terceiro dia, separou a água da terra seca, criou árvores, frutos e sementes, e viu que tudo era bom, a terra e o mar, tudo da melhor qualidade; até aí, tudo continuava  bem.

No quarto dia – cansado de tanta faina, ansioso pelo domingo! -  Deus criou o dia e a noite, as estações do ano, criou o ano, o sol para que resplandecesse o dia, as estrelas  para que a noite não fosse tão escura como antes da Criação. Gostou de tudo, porque era tudo bom –  é o que diz a Bíblia, que repete a palavra bom  em cada frase.

No quinto dia, Deus encheu o mar de peixes e o céu de aves, suaves pombas da paz e águias carnívoras; para ajudá-lo a povoar as imensidões vazias, ordenou a peixes e aves que se multiplicassem - o que aliás todos e todas fizeram com muito gosto! - e Deus viu que tudo era boníssimo, o mundo cheio de bichos ferozes, comendo-se uns aos outros, muito bem, muito bom.

Foi aí que veio o sexto dia e Deus, exausto, observou a terra vazia, desolada, em comparação com o céu e o mar, cheios de bichos alvoroçados, e criou os animais que se arrastam pelo chão e os que se penduram nas árvores, minúsculas formigas e pesados paquidermes; alguns vegetarianos, mas a maioria comedora de carne viva, palpitante, sangrenta. Criou esses animais e viu que todos eram bons, o cão e o gato, o lobo e o cordeiro, a serpente e o passarinho, a formiga e o tamanduá. Comendo-se uns aos outros. Estraçalhando-se, trucidando-se  imperturbáveis. Muito bons.

Analisando a sua obra, Deus teve um estalo repentino e se deu conta de que havia esquecido a coisa mais importante, e que era o centro do seu projeto inicial: tinha criado os coadjuvantes... mas faltava o protagonista. Preocupado, murmurou com seus divinos botões: - “Agora mesmo, sem mais delongas, vou criar o Homem! Vou caprichar. Toda essa fauna e flora, geleiras e vulcões, tudo é diferente de mim – o homem, porém, será criado à minha imagem e semelhança! Igualzinho! Até ruga embaixo do olho ele vai ter, carranca de mau!”

Num átimo de segundo, aproveitando barro molhado jogado no chão, Deus criou o homem carnal e lhe soprou vida e alma pela boca. Vejam bem: toda a Criação - até os répteis mais rasteiros e as minhocas mais subterrâneas - Deus os fez a partir do nada, da sua simples vontade imaterial, abstrata.  O homem, no entanto,  foi o único ser... reciclado: foi feito do barro. Não podia dar certo. Não deu.

Já era o sexto dia e Deus, cansado, olhando o homem de alto abaixo, viu que não era nada disso que ele gostaria de ter feito. Ficou desolado, inconsolável, olhando Adão nu, magrinho, vesgo, de braços cruzados, esperando ordens: -“O Senhor me fez pra quê, heim, doutor? Diga lá!” –  disse o primeiro homem, que já nasceu  reclamando.

 - “Que coisa mais sem graça!” – pensou Deus - “Que loucura que eu fiz! Onde foi que eu errei?!”

Domingo, como se sabe, é o dia do descanso divino e ainda havia muito a fazer antes que acabasse o sábado. Por excesso de trabalho, Deus,  na primeira tentativa, havia feito o mundo muito bom, como diz a Bíblia, mas a grosso modo: primeira versão, rascunho, borrão.

Foi consertando o que pode, na medida das suas possibilidades, e foi percebendo erros infantis que tinha cometido; por exemplo: só depois de pronto, Deus se deu conta de que tinha criado o homem mas, por um lapso inexplicável - ou lamentável misoginia! - tinha se esquecido de criar a mulher.  Como já tinha gasto toda a matéria prima disponível, teve que reciclar outra vez:  anestesiou o homem, tirou-lhe uma costela e, com esse osso encurvado, fez um verdadeiro milagre: inventou Eva! Graças a Deus – e eu digo isso literalmente,  graças a Deus! - nós, os homens,  felizmente não estamos sós!

Lendo a Bíblia, o poeta compreendeu que, apesar de termos sido feitos à semelhança de Deus, somos apenas sua imagem e não o próprio. Deus foi generoso, deu-nos uma inequívoca demonstração de boa vontade,  porém não nos podia fazer exatamente como Ele, não se podia clonar a si mesmo - a clonagem ainda não tinha sido inventada naquelas épocas primais! - e nos fez cópia infiel, quase caricatura. Somos sua imagem; infelizmente, não somos Deus.

Surge aí o problema do bom acabamento – Deus é todo poderoso e, não fosse domingo seu dia de merecido descanso, teria aperfeiçoado a sua criação e feito de nós alguma coisa melhorzinha – o que prova que a pressa é inimiga da perfeição. Depois desse únicos sete dias em que trabalhou de verdade,  Deus resolveu tirar férias – é o que se deduz da Bíblia: depois desse primeiro esboço de mundo, consta que ficou só olhando, não fez mais nada, a não ser criticar e mandar dilúvios.

O poeta descobriu que Deus, além do mais, não tem existência corpórea – seria um limite e Ele não aceita finitudes. Nós somos sua imagem, carnal e perecível: temos um corpo. Ele, porém, não tem peso: é puro pensamento, Espírito sem carne, sem sangue nas veias e sem coração.

Como não tinha braços – é o poeta quem o diz e não eu, homem prosaico que sou! -  pediu ajuda aos artistas plásticos para que revelassem o mundo, não como Ele o criou, imperfeito,  mas como teria sido nas suas divinas intenções frustradas.   

Assim, o magnífico projeto inicial de Deus, imperfeito na sua realização, não seria perceptível nas coisas visíveis por Ele criadas, mas apenas na obra dos artistas que lhe dão o fino acabamento. Só na obra de arte surge a verdadeira idéia de Deus, seu plano piloto do mundo, seu projeto irrealizado pela pressa do fim de semana. 

Deus tinha uma idéia clara sobre sons, silêncios, ruídos, porém não teve tempo de compor as partituras e pediu aos compositores para que fizessem a orquestração: a música seria a realização da idéia divina, apenas esboçada em timbres e melodias,  notas  e  harmonias que andam vagando pelo espaço, aleatórios, esperando serem captados por um gênio musical.

Deus, sem braços, pediu aos pintores que pintassem, aos escultores pediu esculturas, aos poetas lirismos, e a épica Bíblia para explicar o inexplicável. Que história é essa de ficar contando primeiro dia, segundo dia, terceiro dia, quando os dias e as noites só foram inventados no quarto dia?

Deus nos deixou a nós, mortais inacabados, a tarefa de bem acabar o mundo. Para nosso infortúnio, Deus não teve tempo de inventar o Futuro e, contra nossa vontade, Ele nos outorgou total e plena liberdade, deu-nos essa coisa maravilhosa e perigosa, o Livre Arbítrio, que é, a um só tempo, benção e maldição. Ordenou que escolhêssemos nossos caminhos e, sem nos explicar o que era o Bem e o Mal,  apenas nos proibiu de comer maçãs. Abricó e carambola, açaí e acerola, banana e melancia, tudo podia, menos maçã. Isso nunca!

O homem nu tinha fome, e a mulher nua ainda mais faminta estava... e com isso Deus não contava.  E foi assim que, um dia... um belo dia... passeando pelos jardins do Éden, como quem não quer nada... quem diria?, Eva virou-se para o tímido Adão e falou, irritada e nervosa:

- “Esse nosso Deus está ficando muito onipotente, sabe? Onipotente demais  pro meu gosto! Quem é que Ele pensa que é??? Ora essa!!! Pior: eu tenho até a impressão de que está ficando meio onipresente - está em toda parte, espionando a gente! Sabe do que mais, ô xente? Vamos fazer o que me der na veneta, viu, seu careta?  Adão, não me diga que não!”

Adão, depois de muito pensar, resmungou: - “Eu acho, viu...? Acho que... talvez... pensando bem... eu diria mesmo... que... de certo modo... quem sabe? Vendo sob esse aspecto... prisma... por esse ângulo... por sua vez... por outro lado...” 

Para fazê-lo calar, Eva inventou o beijo na boca!

Bem, o resto da história vocês já conhecem: veio a serpente e perguntou: - “Por que não?”   Essa, como se sabe, é a pergunta mais perigosa que existe, a mais subversiva! Por que não, se eu quero sim!?

Não se perguntem nunca “Por que não?”... a menos que vocês queiram de verdade, queiram porque sim!

A PAIXÃO E A ARTE

Graças ao poeta neozelandês, fiquei pensando nas semelhanças entre a obra de Deus e a do artista. Será que Deus só se revela através da obra de arte?  E o que é a arte?

Arte pode ser entendida de muitas maneiras. Eu prefiro dizer que a Arte, qualquer arte, é sempre um conjunto de sistemas sensoriais que permitem aos seres  humanos – e só a eles! – fazerem representações do real.

A arte não reproduz o real: ela o representa. Mesmo o teatro, mesmo no seu mais extremo estilo naturalista, mesmo o diretor francês Antoine que,  no começo do século, ao encenar uma peça cuja ação se passava em um açougue, comprava todos os dias carne fresca, mesmo Antoine criava uma distância estética: de um lado, o palco, suas formas, suas cores; do outro, espectadores. Mundos impenetráveis: um era a imagem do real; o outro, a realidade da imagem.

Mesmo os primeiros pintores rupestres que, nos tetos de suas cavernas, pintavam bisontes, leões e outros animais, mesmo eles sabiam que uma coisa é o real e, outra, diferente, sua representação pictórica: sem medo, o pintor cavernícola se aproximava do chifre e do dente da fera, quando pintada, mas fugia assustado do seu modelo, solto no descampado.

As artes são representações do real, não são o real: mas, que real  é esse que elas representam?  Existem artes, como a música, que organizam o som e o silêncio,  no tempo.  Existem artes, como a pintura, que organizam a forma e a cor, no espaço. E existem artes, como o teatro, que organizam ações humanas,  no espaço e no tempo.

Se nisto consiste a Arte – na organização e na representação do real, e se o teatro representa ações humanas – quais destas ações serão dignas da representação teatral?

Evidentemente, só aquelas nas quais os seres humanos revelam suas paixões. Lope de Veja, escritor espanhol do Século de Ouro, costumava  dizer que o essencial ao teatro são apenas dois atores, um tablado e... uma paixão.

Mas... o que é a Paixão?  A Paixão, como a Arte, pode ser definida de muitas maneiras; eu prefiro dizer que a paixão é  cada um dos sentimentos extremados dos quais o ser humano é capaz. O amor e o ódio, a busca de um ideal e a solidariedade fraterna, a curiosidade científica e a realização esportiva,  podem ser paixões, se forem extremos. Até o artista, quando o é,  é um apaixonado.

É preciso reabilitar a Paixão, restaurar seu sentido primeiro de força vital, danificado pela semântica que faz da palavra grega pathos a origem de paixão e patologia. Paixão não é sofrimento, não é doença: é vida! A Paixão do Cristo não foram as doze quedas, percalços no caminho do Calvário: Paixão era a  sua determinação em realizar o desejo do Pai e salvar o ser humano do pecado original.

Quem vos fala não é um religioso: é um apaixonado!  Sou um homem apaixonado pelas paixões, e juro que não são elas que causam meu sofrimento: são os obstáculos que entre mim e elas são erguidos.

Não é a paixão de Romeu e Julieta que os faz sofrer e lhes traz a morte: é o ódio voraz entre Montequios e Capuletos, suas famílias latifundiárias, sequazes e capangas, que lutam por mais terra e poder.

O obstáculo faz sofrer: a paixão vivifica! Foi a paixão do Chê Guevara que o levou à felicidade cubana; foram os obstáculos imperialistas que o levaram à morte boliviana.  Foi a paixão do Tiradentes que o levou à Inconfidência Mineira; foi D. Maria, a Louca, que o levou à forca!

A paixão faz sofrer, é certo, não, porém, porque seja  paixão, mas por é  libertária!

O ser humano, na sua luta inclemente contra a Natureza, luta pela sobrevivência e pelo gozo, pelo desejo de fruir a vida tão fugaz – nosso direito e dever! -  torna-se extremado, rompe barreiras: o ser humano é urgente, pois que é mortal e a morte não espera - para adiá-la, as paixões existem, muitas e variadas.  Só uma, porém, será a paixão trágica: aquela  na qual o risco consciente que corre o apaixonado é a vida. Ele, ou ela, preza o objeto da sua paixão mais do que preza a vida.[1]

A paixão, por ser libertária, procura reinventar a vida, recriar o mundo. É o rio que destrói as margens e fecunda a terra!

Somos apaixonados – por que, então, não somos trágicos?  Nossa paixão, no dia a dia, nem se mostra nem se proclama. Passamos a vida estrangulando paixões, nossas e alheias. Disfarçando-as, escondendo-as – vestindo-as com paletó e gravata ou saia justa. A paixão verdadeira, no entanto, é nua – porque é total e plena, insubmissa! – não pode respeitar regras, horários, conveniências, etiquetas.  Explode!  Arrebenta!

No extremo oposto à Paixão Trágica, está o Amor Palhaço. Um sentimento é extremado quando não teme a morte. O Palhaço não chega a tanto, não enfrenta o mundo: ele apenas o desorganiza. Através do seu próprio ridículo, expõe o dos outros – o nosso! – que, sem o palhaço, passaria desapercebido, tão resignados estamos ao nosso próprio ridículo: já não o vemos. Somos todos palhaços, mas o mundo inteiro é um picadeiro, e não existe platéia neste circo: todos atuam.  Eis que surge o palhaço verdadeiro – surge vestido de palhaço: é ele a nossa consciência crítica! Nós o aceitamos porque tem o nariz vermelho.[2]

É isso o teatro: é a paixão trágica e é o amor palhaço. Ela, justifica nossa vida; ele, corrige nosso trajeto!

O ARTISTA LOUCO E O LOUCO ARTISTA

Mas o que faz o artista quando pretende corrigir a obra de Deus ou, pelo menos, interpretar seus desígnios? Ou, se não os d´Ele, se n´Ele não crê, os da Natureza? Fazendo arte, o artista faz uma loucura: imita e corrige Deus – dentro dos limites do bom senso, vigiado pelo palhaço que traz em si. E o que faz o louco, fazendo o mesmo, quando delira? Faz arte. O louco é o artista trágico, sem os limites do palhaço, que desconhece. O louco não teme o palhaço, que a nós assusta.

O artista e o louco buscam o mesmo fim: ordenar o caos, buscar sentidos. Foi o que fez Deus logo no primeiro dia da Criação.   Diz a Bíblia:  “No  princípio  era  o Caos e Deus disse:

-  ‘Acedam-se as luzes!’” E viu-se o invisível. Quando Van Gogh pinta arbustos balançando ao vento, Van Gogh pinta o vento: faz-nos ver o invisível, como Deus. Quando Beethoven cria uma sinfonia,  faz-nos ouvir o silêncio –  ouvir o inaudível. Quem, se não Deus, faria o mesmo?

O artista e o louco buscam dar um sentido à vida e à Natureza que, como sabemos, não têm sentido.

A Natureza é cruel, impiedosa, como trabalho inacabado que é, imperfeito rascunho. Vai em frente, vai às tontas, como cego em tiroteio.  Nela, a bondade não existe – não viceja como flor silvestre. É verdade que os animais protegem os filhos, pelos quais demonstram sentir coisa parecida ao nosso humano amor, nosso carinho; mas, a mesma fêmea que afaga a cria, estraçalha filhotes de outros bichos, estraçalha vidas. Na Natureza, o gordo come o magro, o forte engole o fraco. Isso não é bom!

Sabemos que, verdade terrível, neste mundo mal acabado, a vida se alimenta da morte: temos que comer e, para comer, temos que matar – couve-flor ou cabrito: matamos para que matem nossa fome. Estar vivo é apenas ainda não estar morto! “Cadáver adiado que procria” – disse o poeta Pessoa.[3]

Neste mundo de rancor e ódio, trancos e barrancos, a bondade é uma invenção humana. Tem que ser ensinada e aprendida: por isso, temos necessidade de artistas e de loucos – para que nos mostrem outros caminhos possíveis, além das sendas já trilhadas, o vai e vem da mesma rua. Para que nos mostrem os desígnios de Deus ou os propósitos da Natureza. Que os inventem, que façam desabrochar a Natureza, guiada por outra invenção humana: a Ética.

Minha mãe, cheia de sabedoria, já repetia o saber popular: de artista e de louco, todos nós temos um pouco. Fosse viva, hoje diria, na sua infinita sabedoria: de artista, de Deus e de louco, todos nós temos um pouco!

Pelo amor de Deus, não curem nunca nossos loucos – apenas aliviem sua dor. Pelo amor aos loucos, não abandonem pela metade o inacabado trabalho de Deus: avancem precipício adentro. Pelo amor à Humanidade: sejamos todos artistas, sejamos todos loucos.

Sejamos loucos artistas, sejamos artistas... loucos.


NOTAS

[1]  Não basta o risco para que uma paixão seja trágica, pois existem arriscadas paixões gozosas:  é obrigatório que o seu objeto seja necessário – não apenas caprichoso! - e que seja impossível obtê-lo.

 Antígone é uma mulher apaixonada pelo direito da família: enterrar seus irmãos mortos, os que lutaram contra sua própria pátria – eram, porém, seus irmãos! – é necessário... e é impossível: Creonte, apaixonado pelo direito do Estado, não irá permiti-lo!

[2] O que caracteriza a não tragicidade do Palhaço, além da economia e parcimônia dos seus atos, são os meios inadequados ou insuficientes que emprega para obter o objeto do seu amor. O palhaço apenas cutuca seu adversário com a bengala, estica o pé para que tropece, foge do seu olhar e, às suas costas, reaparece: jamais puxa o gatilho, ou empunha o punhal!

Colombina não é uma impossibilidade para Pierrô, mas também não é necessária – outras dançarinas existem, ela faz parte de um Coro, não é Desdêmona nem Julieta, mulheres únicas; Colombina é descartável. O herói trágico, ao contrário, não existe sem o que busca! Romeu não existiria se apenas desejasse a cama de Rosalinda.  Romeu é mais: é um apaixonado. Romeu... é Julieta. Otelo é...  Desdêmona.

A falta de determinação do palhaço branco, sua falta de entrega total e plena,  é o  que o impede de correr os riscos maiores que correm Romeu e Otelo; a melancólica tristeza de Pierrô e o seu caracter sonhador, reflexivo e distante, afastam a bailarina, que baila e rodopia em busca do desenvolto Arlequim, que tem os pés no chão, e nela. Nem Pierrô, nem Charlô, nosso Carlitos,  nenhum dos dois - que são o mesmo! -  se concentram na busca do seu objeto, nem por ele oferecem a vida – quando muito, a face ou o traseiro e , mesmo assim,  por descuido.

Pierrô, no seu vagar impreciso, há de sempre encontrar outra Colombina; e, ao encontrá-la, perdê-la: eis o destino dos que amam sem paixão!  

[3] Fernando Pessoa, poeta português contemporâneo.


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