LA ESCENA
IBEROAMERICANA. BRASIL UMA VIAGEM AO CENTRO DO CÍRCULO
Por Sebastiao Milaré
Depois
de muito navegar por mares às vezes calmos, às vezes bravios,
carregando a bordo imagens e sonhos dos países lusófonos
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe a barca da
Viagem ao Centro do Círculo aportou em Berlim, na Universität
der Künste, no dia 17 de novembro de 2001.
Deu-se ali, no coração da capital
alemã, uma festa afro-brasileira, permeada de fados portugueses,
celebrando o multiculturalismo, o convívio dos diferentes, o
sacro e o profano, o arcaico e o contemporâneo.
Não foi porto de chegada, apenas uma
escala do projeto realizado ao longo de dois anos, envolvendo sete países
em três continentes, em cujo núcleo está o teatro.
A Viagem ao Centro do Círculo, num processo de investigação
através de workshops, testou a potencialidade do teatro como
meio de aproximação das culturas e propiciador de um diálogo
que revela o ser humano sob as diferentes vestes, os diversos costumes
sociais, as dissonantes sonoridades.
Idealizado pelo encenador alemão Stephan
Stroux, o projeto foi produzido pela Cena Lusófona, de Coimbra,
com apoio das companhias Escola da Noite (Coimbra), Cia. de Teatro de
Braga e Teatro Vila Velha (Salvador). Constituiu-se de workshops em
que se fazia o levantamento da cultura viva e se selecionava atores
para a montagem do espetáculo Quem Come Quem, título
inspirado na divisa da mais importante corrente do modernismo brasileiro,
a Antropofágica, ampliando por todo o universo lusófono
seus significados básicos, anticolonialistas, de devoração
ritual das culturas alienígenas.
Tive o privilégio de participar do
projeto na condição de dramaturgista e procuro oferecer
neste número de Teatro CELCIT um panorama dessa Viagem, pelo
que ela representa como processo cultural importante neste mundo globalizado
e como processo de criação cênica.
Territórios da sensibilidade
Preside a idéia da Viagem ao Centro
do Círculo o propósito de buscar o conhecimento das culturas
lusófonas não compulsando livros de sociologia, história,
antropologia etc., mas captar-lhes traços, sinais, sons, características
através dos olhos, do corpo, da sensibilidade dos atores.
Realizados em Salvador, (Bahia, Brasil),
Maputo (Moçambique), Luanda (Angola), Mindelo (Cabo Verde), São
Paulo (Brasil), os workshops fizeram brotar da memória, do gestual
e do canto elementos da cultura viva, pulsante, vital. Com esse material
difuso, impressionista, fragmentado, perdido entre a realidade
e a fantasia, teve início o mapeamento do território onde
fluem os sonhos humanos condicionados à História e aos
estigmas nacionais.
Aqui vale o conselho a que não se
confunda o mapa com o território, até porque os instrumentos
utilizados no mapeamento procedem da emoção e do ato de
transformar a realidade em matéria estética. A emoção
e a transformação estética fornecem instrumentos
implacáveis, porém muito imprecisos. Tentar através
deles a nitidez das linhas, num sentido cartesiano, será ato
destinado a falecer por falta de fôlego.
No desenrolar dos workshops os efeitos do
sistema criativo estabelecido por Stephan Stroux se fizeram sentir.
Impressionava a constatação, cada vez mais clara, de que
os atores revelavam de modo denso, às vezes dramático,
a cara da sua cidade. Impressionavam também os verdadeiros happenings
em que se transformavam seções do workshop, com performers
apalpando o invisível e o incognoscível através
da memória e da emoção. Eram rios e corredeiras
de símbolos mesclando o real e o imaginário que rolavam
desde os espaços da infância e das memórias
afetivas -- o método estimulava os atores a mergulhar nessas
correntes para resgatar da vivência pessoal a memória coletiva.
O processo é todo recorrente e absolutamente
repetitivo. Através da recorrência e da repetição
as culturas observadas evidenciam contrapontos e contradições
entre si. Contrapontos e contradições que, por outro lado,
atuam internamente em cada núcleo. A impressão é
de um jogo de espelhos envolvendo o público e o privado, o atual
e o arcaico, o sacro e o profano.
A recorrência e a repetição
recortam ínfimas partes de sistemas complexos através
de aspectos da vivência dos artistas cênicos, que fazem
do corpo o veículo para que a alma individual expresse a alma
coletiva. Para que isso ocorra, o método estimula-os a encontrar
espaços. E os espaços abertos em cena, sugeridos
pela memória de cada ator, instigam no participante a abertura
de espaços mentais e espirituais, indispensáveis ao seu
ofício.
Os preparativos da viagem
O chão do palco é nossa
terra, a terra do teatro, diz Stephan Stroux, ao se iniciarem
os trabalhos.
Estando todos sentados em círculo,
cada ator é convidado a tocar o chão com as mãos,
batendo-as ritmadamente, tentado estabelecer contato com uma pessoa
imaginária, dizendo que a ama ou pedindo que o deixe em paz.
O ator termina tal comunicação e a outro é
solicitado que interprete as batidas ritmicas como chamamento ou rejeição.
É o princípio do diálogo entre atores, que responderão
depois pela ação e seu desenvolvimento. O encenador anula
a postura convencional do seu cargo: será um provocador apenas.
Na seqüência, alternam-se batidas
no chão e no próprio corpo, que passa a funcionar como
caixa de ressonância. Cresce o ritmo, os atores se
levantam e tem início a dança. Em todos os workshops houve
o crescendo das batidas e do movimento corporal. Por fim, dançando,
os atores formam um círculo. A cada vez duas pessoas invadem
o círculo, dançam e se retiram, ampliando a expressão
emocional, instigadas pela música do grupo.
Há uma pausa após esse aquecimento
e, em seguida, os atores voltam a sentar-se em círculo. Cada
um canta sua canção pensando em uma pessoa imaginária
com o mesmo propósito de chamamento ou de rejeição,
sendo novamente sua intenção interpretada por outro ator.
O procedimento é o mesmo verificado na ação anterior.
Por fim, todos cantam juntos, produzindo ritmo com batidas de mãos
e pés, dançando.
Desta maneira, pretende-se sinalizar aos
atores caminhos para a busca de uma expressão própria,
gerada pela memória sensual e afetiva. Os temas que se iniciam
a partir desse momento descrevem um ciclo, abordando a infância,
as utopias individuais e coletivas, a espiritualidade, a evocação
dos ancestrais, a relação do homem com os quatro elementos
da natureza. Têm importância, esses procedimentos iniciais,
porque o desenrolar do processo afastará tanto quanto possível
a elucubração e a ilustração da realidade,
induzindo o ator a buscar dentro de si mesmo a visão de cada
um dos temas, que assim se colocam nas jornadas diárias: 1º:
Dia da Criança; 2º: Nostalgia da Terra; 3º: Água
Dia de Homens e Mulheres; 4º: Fogo Dia de Guerra
e de Sobrevivência; 5º: Ar Dia da Religião
e dos Ancestrais; 6º: Dia da Comida (Quem come quem?).
Em todos os estágios do processo a
questão teatral é colocada em relevo. Não se trata
de curso de teatro ou de ensino de técnicas interpretativas,
mas de uma proposta cênica que pretende dar unidade a diferentes
maneiras de entender e praticar teatro. Cada país tem sua cultura
dramática. Será uma cultura mais ou menos desenvolvida,
do ponto de vista europeu. Justamente esse ponto de vista é que
termina sendo contestado no processo. É preciso respeitar as
diferentes culturas e não as rotular segundo critérios
apriorísticos. Porém, como representantes dessas diferentes
culturas estarão se relacionando num mesmo espetáculo?
De que maneira se poderia alcançar a pretendida unidade senão
fazendo com que todos voltem a uma noção básica
da ação dramática, que pode ser definida como a
expressão do Homem (homem no sentido da espécie,
evidentemente)?
Com essa perspectiva Stephan Stroux dirigiu
os trabalhos. Solicitava dos atores um mergulho na memória pessoal,
dela recuperando expectativas já abandonadas, sonhos e realidades
conflitantes. E ao mergulhar na sua própria história,
o ator faz emergir traços significativos da sua sociedade (o
homem é produto do meio e reflete o meio). A relação
afetiva do indivíduo com o elemento terra, por exemplo, é
muito diferente em Maputo, onde o homem preserva a harmonia com a natureza,
em face de Luanda, onde a questão da sobrevivência é
calculada a cada minuto e a natureza se confunde com o lixo, ou de Cabo
Verde, onde a formação vulcânica faz dueto com intermináveis
secas, ou de São Paulo, onde a natureza foi engolida pelo concreto.
De maneira que o sonho do homem está condicionado à realidade
onde vive, subordinada à história e às condições
sociopolíticas.
Haveria uma distorção formidável
caso se desse espaço às elucubrações abstratas.
E isso foi exaustivamente vigiado pelo diretor. As referências
deviam ser sempre a coisas concretas, os objetos utilizados em cena
tinham que ser autênticos. As relações é
que remetem todas as coisas, tanto relatos de memória quanto
objetos, ao universo poético. Todas as coisas têm
vida, diz Stephan numa verdadeira profissão de fé,
mudam dentro do espetáculo. Mudam conforme a conotação,
sem perder seus valores intrínsecos. Cada objeto tem sua história
e a conta no espetáculo (é claro que através
das relações).
Vasculhando a memória
Os temas sofreram alterações
de um para outro workshop, atendendo às diferentes realidades
socioculturais dos núcleos. Permanecia, contudo, a atitude especulativa,
assim desdobrando o universo temático:
Dia da Criança: Propõe a lembrança
de um espaço da infância, um sítio onde o ator,
quando criança, se refugiava para ter privacidade e sonhar. Ele
deve encontrar nas áreas disponíveis para o trabalho um
espaço de pulsação semelhante àquele da
infância. Nesse espaço, faz um exercício introspectivo
buscando recuperar os pensamentos, as utopias infantis, uma canção
que o marcou nessa época e o jogo infantil preferido. Há
um tempo de silêncio e reflexão em que cada ator, no sítio
escolhido, procura mergulhar na própria memória. Findo
o tempo, o grupo todo visita cada um dos participantes em seu respectivo
espaço e ouve a narrativa daquela experiência particular.
Ao cantar a canção da sua infância, os ouvintes
o acompanham cantando, se a conhecerem. Dá-se então um
fenômeno que reporta às origens do teatro, com o narrador
e o coro. Por fim, o ator realiza um jogo infantil de que gosta, com
a participação dos demais (com isso, o projeto documentou
em vídeo mais de uma centena de jogos infantis).
A canção da infância
será utilizada, em improvisações, como arma de
defesa da criança, quando se sente ameaçada. Os pais brigam
dada a impossibilidade de comunicação entre eles
gerada pela impotência frente a este ou aquele aspecto da vida
comum -- e a criança se defende com sua canção.
Isso provoca substancial alteração narrativa, o naturalismo
do episódio doméstico se transforma em condensação
poética.
Nostalgia da Terra: No final dos trabalhos
do primeiro dia, é solicitado aos atores que, dia seguinte, tragam
uma panela de metal (necessariamente usada, que tenha história)
contendo terra. Não qualquer terra, mas um tipo de terra com
o qual o ator tenha laços afetivos. As panelas são colocadas
em linha reta, ao fundo do espaço cênico. Nesse dia, os
atores falam de animais e plantas preferidos, realizando improvisações
sobre tipos de violência contra a natureza e o ser humano. Depois,
realiza-se também a visita do grupo a cada panela para que o
ator que a trouxe fale da sua ligação com aquela terra.
Com freqüência, a explanação traz importantes
evocações de experiências de vida pessoal e coletiva.
Faz-se uma roda, em seguida, e os atores cantam uma canção
da terra. Duplas ou trios de atores vão para o centro do círculo
dançando, enquanto os demais atiram terra das panelas aos seus
pés. As panelas permanecem em linha reta no fundo do espaço
cênico até o penúltimo dia do workshop, constituindo
elemento concreto e poderoso por suas significâncias, tornando-se
um dado importante ao desenvolvimento dos trabalhos.
Água Dia de Homens e de Mulheres:
Seria, também, o dia dos heróis e da fertilidade. Os atores
procuram no espaço cênico um lugar que representará
outro -- da sua realidade -- ligado a alegria. Nesse lugar, dá-se
um ritual de fertilização da terra. O ator fala sobre
um fato da sua vida em que a água teve importante participação.
Depois, derrama água na mão e a esparge sobre a terra,
dentro da panela. Isso acontece no lugar escolhido pelo ator (um lugar
ligado à alegria) e todo o grupo o está visitando. Inicialmente,
nesse dia evocavam-se ritos preparatórios da mulher para o casamento.
Esse subtema, porém, foi descartado nos últimos workshops.
Finalmente, Stephan anuncia o milagre da fertilização:
em cada panela nascerá uma planta. Os atores deitam-se com a
cara voltada para o chão, corpo estirado, tendo a panela junto
dos pés. Nessa posição, olhos fechados, entoam
uma melodia sem palavras. Num jogo teatral, Stephan coloca em cada panela
uma câmara fotográfica: é a planta que
os atores encontram ao abrir os olhos.
Fogo Dia de Guerra e de Sobrevivência:
Antes de se iniciarem os trabalhos, os atores escrevem em uma bandeira
branca, estendida sobre o chão, nome de coisas que abominam (guerra,
violência, mentira, hipocrisia, por exemplo). A bandeira, presa
ao mastro, é hasteada em um ponto do espaço cênico,
ali permanecendo até o fim dos trabalhos. Nesse dia, faz-se leitura
de um texto poético de autor daquele país, nele buscando
elementos temáticos para improvisações. O fogo
representa não apenas destruição, também
aconchego e proteção. Isso se celebrava, nos países
africanos, com a canção angolana que diz: Os meninos
à volta da fogueira/ vão aprender coisas de sonho e de
liberdade/ vão compreender como se ganha uma bandeira/ e vão
saber o que custa a liberdade, evocando as lutas tão recentes
pela libertação dos seus países. No final do dia,
realiza-se um cortejo, ao som de música que evoque o fogo, sendo
levada à frente a bandeira das malquerenças.
A bandeira é por fim queimada em meio à alegria geral,
expressa em cantos e danças.
Ar Dia da Religião e dos Ancestrais:
As improvisações são canalizadas para temas que
provoquem nos atores a emergência da memória mítica.
Por isso, a argumentação e a maneira de conduzir os trabalhos
variaram muito de um a outro país. Lida-se com o material de
memória recolhido nos dias anteriores e textos poéticos
em improvisações dramáticas. Os trabalhos têm
início com toques de atabaque, começando calmo, como o
sopro da brisa, culminando com a fúria da tempestade, evocando
caos e pânico. Mas, o Dia do Ar está também ligado
ao Carnaval, quando é possível ao homem do povo tornar-se
rei, numa transgressão satírica ao poder. Os atores trazem
fantasias e, no final do workshop têm 30 segundos cada um para
revelar o caráter escolhido.
Dia da Comida (Quem Come Quem?): No segundo
ou terceiro dia do workshop procedia-se ao sorteio do amigo secreto.
Escrevia-se o nome de cada participante em um papel, que era dobrado
várias vezes. Misturadas essas dobraduras, cada participante
tirava uma. Era o nome do seu amigo secreto. Esse nome deveria continuar
absolutamente secreto até o Dia da Comida, que encerrava o workshop,
ligando-o à divisa antropofágica.
Para esse dia, cada ator preparava uma comida
(se possível na mesma panela em que trouxera a terra) a ser oferecida
ao seu amigo secreto. Mas, ao prepará-la, devia criar uma ficção,
assumir um personagem e propor ao amigo secreto, no momento de oferecer
a comida, um jogo dramático. Assim, a comida oferecida tinha
um propósito fosse o de agradar, seduzir; fosse o de repudiar,
agredir. E o jogo exige do ator reflexos rápidos. Competia ao
convidado entender rapidamente o que lhe era proposto. O ocasional anfitrião
estava atento às reações do outro. Estabelecia-se
o clima de tensões dramáticas que resultou em performances
não raro muito ricas, às vezes transcendendo ao meramente
descritivo de uma realidade, para criar sua própria realidade
poética.
O Grande Teatro do Mundo
O mundo é sempre uma representação,
vivemos no nosso dia-a-dia um grande teatro. Essa verdade escapa quase
sempre aos fazedores de teatro, que recorrem às abstrações,
às emoções convencionais, ao receituário
emotivo e estético. Mas o drama verdadeiro, ritualístico,
denunciador da condição humana no mundo contemporâneo,
dominado por deuses materialistas, está no depoimento da atriz
de Moçambique, tão jovem ainda, mas que teve tempo de
presenciar terrível massacre em uma estação ferroviária;
ou no depoimento de um ator de Cabo Verde país onde as
pessoas são forçadas ao desterro para alimentar a família
que colocou na panela, entre outras terras, a do cemitério
onde foi enterrado seu pai, que tão pouco conviveu com ele, forçado
a obter o sustento da família em outras terras; ou dos atores
de Angola, reprimindo seus sonhos, suas fantasias pessoais, porque há
sempre um perigo na esquina e ninguém pode descuidar
ou devanear numa terra em que o sonho é proibido; ou de atores
de São Paulo, que transformam a competição cotidiana
numa angustiante disputa do poder representado num prato de salada.
Este é o Grande Teatro do mundo lusófono que os workshops
da Viagem ao Centro do Círculo evidenciaram. Não há
salvação para o homem, senão na compreensão
de si mesmo, que possibilita a compreensão do Outro.
Em todos os núcleos o Dia da Comida
foi o mais rico, teatralmente. Houve ocasiões que o jantar se
transformou em pequenas peças de fina poesia. Nessa observação,
registre-se, está o elogio ao processo de Stephan Stroux. No
final de uma semana de trabalho, percebia-se claramente o quanto os
atores tinham assimilado seus ensinamentos. E, mais ainda, como através
das sugestões do encenador os atores deixaram aflorar conteúdos
míticos da sua realidade. As sugestões se convertiam em
atitudes nas cenas improvisadas, nos relatos íntimos, no constante
revolver da memória pessoal e coletiva.
Esses horizontes temáticos, pesquisados
na própria vivência do ator, somados à obediência
das leis cênicas, ao valor dado aos espaços (todos os espaços
possíveis estão no palco), à naturalidade da expressão
teatral (poética e não realista) resultavam no repertório
criativo das improvisações desse último dia.
Mas, ao longo do workshop, o teatro revela
sua pujança transformadora. O chão não é
o mesmo do primeiro ao último dia. A terra jogada sobre o cimento
alisado ou as tábuas do piso, transformam o chão. Ele
deixa de ser aquilo que é, materialmente, para se transformar
numa metáfora. A panela, dia a dia ganha novos significados.
A percepção dessa mudança vai atuando no corpo
e na alma dos atores que passam, de modo ao mesmo tempo racional e emocionado,
a buscar uma compreensão de si mesmos e do mundo em que vivem;
a valorizarem a relação com o Outro e, nesse amontoado
anárquico de informações, a questionar o sentido
superior dessa fatalidade humana, que é viver.
A câmara descartável deixada
nas panelas, num faz-de-conta que é planta, contém filme
com 27 poses. O ator deve fotografar coisas que lhe são importantes
no dia a dia, coisas da sua cidade, ou do seu bairro, ou da sua casa,
assim como pessoas, animais e plantas do seu universo pessoal. Revelado
o filme, ele escolhe dez das vinte e sete fotos e as entrega para a
documentação do projeto.
As imagens de espaços íntimos,
de objetos pessoais ou caseiros, das atividades humanas, de paisagens
etc., registradas pelos atores e atrizes participantes do workshop,
criam no conjunto uma visão íntima do cotidiano de cada
cidade -- por extensão, de cada país. Cruzam-se como fios
de uma rede, essas imagens, com os sons gravados na fita cassete, também
entregue aos atores, que revelam sons locais, o gosto musical e todo
o temário que emociona a respectiva comunidade.
Ao fazer os registros sonoros e visuais o
ator está completamente envolvido pela atmosfera do workshop,
que lhe estimula a memória afetiva. Dessa maneira, os trabalhos
prospectivos transbordam a sala de ensaios, invadem a privacidade dos
atores. Os limites entre o público e o privado se esgarçam
e, quase sempre, os atores começam a alimentar a própria
imaginação com sua experiência de vida, nas improvisações.
Pudores são desmistificados e a verdade de cada um passa a aparecer
de modo perceptível. O Grande Teatro do Mundo ganha força,
se ilumina e se intensifica.
Documentos da vida lusófona
O conjunto dos documentos recolhidos nos
workshops fala de diversas realidades culturais, evidenciando pontos
de semelhança, ou identidade, como pontos de profunda divergência
entre elas. A própria língua que as une tem validade relativa.
Não apenas pelos dissonantes sotaques nacionais e regionais,
mas porque em alguns países o português convive com idiomas
nacionais, tantos quantas etnias existirem no país em
Moçambique, por exemplo, existem trinta e seis idiomas nacionais.
Por documentos, entenda-se não apenas
as fotografias, os sons gravados em cassetes e os textos que os atores
também deviam providenciar (escritos por eles mesmos ou escolhidos
entre os de sua preferência), mas todo o registro dos trabalhos
feito em vídeo por Beatrice Babin.
São centenas de horas de gravação
captando o comportamento dos integrantes de cada núcleo, os depoimentos,
as improvisações, os cantos, as danças e os jogos
infantis. Uma coletânea eloqüente da vida social, econômica
e afetiva dos povos abordados, mas também um painel dos diferentes
modos criativos, refletindo as maneiras particulares de cada povo expressar
sua realidade.
A riqueza do processo desencadeado pela Viagem
ao Centro do Círculo, na primeira fase do projeto, ultrapassa
os limites específicos do teatro e pode alimentar outros campos
do conhecimento. Para este trabalho, todavia, interessa exclusivamente
o que tem relação direta com o teatro.
O difícil, na verdade, é definir
quais são os limites específicos do teatro. Todo o conhecimento,
afinal, seja de que campo for, interessa ao teatro. Não se pode
pensar uma criação dramática indiferente a qualquer
contextualização. O teatro é alimentado da vida
e do saber, devolvendo o alimento à vida e ampliando o saber.
Uma arte que bebe de todas as fontes e devora todo tipo de informação
que encontra pela frente. Por isso mesmo, uma arte sempre vinculada
à realidade social. Consequentemente, a criação
dramática vital não se prende a abstrações,
mas a realidades.
O conhecimento da realidade, no teatro, estabelece
a horizontalidade da obra; a arte está, por fim, na capacidade
do artista em verticalizar esse conhecimento
O conjunto dos documentos recolhidos expressa
essas realidades e sua finalidade, dentro do projeto, é estabelecer
diálogo entre os vários grupos participantes.
O Espetáculo
Nos workshops que antecederam aos ensaios
do espetáculo Quem Come Quem?, em Coimbra, esse acervo
apoiou os atores na busca de memórias e na relação
com os outros. A idéia era de que cada ator se contaminasse das
realidades do universo lusófono, propiciando assim a criação
de obra teatral que o reflita em sua complexidade.
Quem Come Quem? foi o resultado
estético da aventura, uma breve visão cênica da
Viagem pioneira pela comédia humana de três continentes.
O que se viu em cena no Teatro Gil Vicente, de Coimbra, em junho de
2000, não foram devaneios nem abstrações e sim
a tentativa de transpor ao território poético a realidade
dos homens que habitam o contraditório universo lusófono.
Fugindo à dissertação histórica e aos envolventes
acenos do pitoresco, observa amorosamente a alma humana.
O início do espetáculo refere-se
à viagem, o percurso dos homens em busca da liberdade ou de vida
melhor. Dá-se o encontro, o reconhecimento mútuo
e o mergulho às raízes étnicas, ao inconsciente
coletivo, para de lá emergirem os dramas pessoais e a memória
de vida dos atores. Tudo o que acontece em cena tem como ponto de partida
as realidades vivenciadas. Poetas lusófonos comentam ou fazem
contraponto com sua ficção profética às
referências do real. Isto significa que os atores não são
meros repetidores de um texto alheio: vivem em cena histórias
por eles oferecidas ao curioso alemão Stephan Stroux, que os
dirige tentando unir as diferentes fábulas, dar unidade ao aparentemente
discrepante, de modo a criar pela síntese e por metáforas
a visão de tudo o que encontrou ao longo da viagem.
Assim, com memórias entretecidas de
canto e dança, o espetáculo apresentou o vigor, a energia
exuberante, o rico imaginário do mundo lusófono.
Festa em Berlim
O encontro Wer Frisst Wen, realizado em Berlim,
com participação de músicos e cantores brasileiros
e portugueses, grupos de dança de Moçambique, artistas
e intelectuais dos países lusófonos e da Alemanha, propôs
a reflexão sobre as diferenças étnicas, sociais
e religiosas, que a globalização trouxe ao primeiro plano
na História do mundo contemporâneo. O convívio com
as diferenças torna-se agora uma das condições
básicas para a própria sobrevivência humana.
O exemplo do processo criador de Quem
Come Quem (cujo espetáculo, na ocasião, foi apresentado
em vídeo), transcende ao fenômeno estritamente teatral
para indicar formas de aproximação de diferentes culturas.
O debate abordou a questão do diferente na própria
Alemanha, quer entre o povo das Alemanhas Oriental e Ocidental, após
a queda do Muro de Berlim, quer entre o cidadão alemão
e as colônias de estrangeiros radicadas no país, especialmente
a dos turcos. E a melhor maneira de estabelecer convívio harmônico
e respeitoso é o desarmamento do espírito, o interesse
pela história do Outro. Coisas em que foi baseado o processo
criativo do espetáculo e tornaram-se o seu fundamento.
Com essa idéia generosa de aproximação,
reconhecimento e celebração, a Viagem ao Centro do Círculo
continua.