LA ESCENA IBEROAMERICANA. BRASIL
UMA VIAGEM AO CENTRO DO CÍRCULO

Por Sebastiao Milaré

Depois de muito navegar por mares às vezes calmos, às vezes bravios, carregando a bordo imagens e sonhos dos países lusófonos – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe – a barca da Viagem ao Centro do Círculo aportou em Berlim, na Universität der Künste, no dia 17 de novembro de 2001.

Deu-se ali, no coração da capital alemã, uma festa afro-brasileira, permeada de fados portugueses, celebrando o multiculturalismo, o convívio dos diferentes, o sacro e o profano, o arcaico e o contemporâneo.

Não foi porto de chegada, apenas uma escala do projeto realizado ao longo de dois anos, envolvendo sete países em três continentes, em cujo núcleo está o teatro. A Viagem ao Centro do Círculo, num processo de investigação através de workshops, testou a potencialidade do teatro como meio de aproximação das culturas e propiciador de um diálogo que revela o ser humano sob as diferentes vestes, os diversos costumes sociais, as dissonantes sonoridades.

Idealizado pelo encenador alemão Stephan Stroux, o projeto foi produzido pela Cena Lusófona, de Coimbra, com apoio das companhias Escola da Noite (Coimbra), Cia. de Teatro de Braga e Teatro Vila Velha (Salvador). Constituiu-se de workshops em que se fazia o levantamento da cultura viva e se selecionava atores para a montagem do espetáculo “Quem Come Quem”, título inspirado na divisa da mais importante corrente do modernismo brasileiro, a Antropofágica, ampliando por todo o universo lusófono seus significados básicos, anticolonialistas, de devoração ritual das culturas alienígenas.

Tive o privilégio de participar do projeto na condição de dramaturgista e procuro oferecer neste número de Teatro CELCIT um panorama dessa Viagem, pelo que ela representa como processo cultural importante neste mundo globalizado e como processo de criação cênica.

Territórios da sensibilidade

Preside a idéia da Viagem ao Centro do Círculo o propósito de buscar o conhecimento das culturas lusófonas não compulsando livros de sociologia, história, antropologia etc., mas captar-lhes traços, sinais, sons, características através dos olhos, do corpo, da sensibilidade dos atores.

Realizados em Salvador, (Bahia, Brasil), Maputo (Moçambique), Luanda (Angola), Mindelo (Cabo Verde), São Paulo (Brasil), os workshops fizeram brotar da memória, do gestual e do canto elementos da cultura viva, pulsante, vital. Com esse material difuso, “impressionista”, fragmentado, perdido entre a realidade e a fantasia, teve início o mapeamento do território onde fluem os sonhos humanos condicionados à História e aos estigmas nacionais.

Aqui vale o conselho a que não se confunda o mapa com o território, até porque os instrumentos utilizados no mapeamento procedem da emoção e do ato de transformar a realidade em matéria estética. A emoção e a transformação estética fornecem instrumentos implacáveis, porém muito imprecisos. Tentar através deles a nitidez das linhas, num sentido cartesiano, será ato destinado a falecer por falta de fôlego.

No desenrolar dos workshops os efeitos do sistema criativo estabelecido por Stephan Stroux se fizeram sentir. Impressionava a constatação, cada vez mais clara, de que os atores revelavam de modo denso, às vezes dramático, a cara da sua cidade. Impressionavam também os verdadeiros happenings em que se transformavam seções do workshop, com performers apalpando o invisível e o incognoscível através da memória e da emoção. Eram rios e corredeiras de símbolos mesclando o real e o imaginário que rolavam desde os “espaços da infância” e das memórias afetivas -- o método estimulava os atores a mergulhar nessas correntes para resgatar da vivência pessoal a memória coletiva.

O processo é todo recorrente e absolutamente repetitivo. Através da recorrência e da repetição as culturas observadas evidenciam contrapontos e contradições entre si. Contrapontos e contradições que, por outro lado, atuam internamente em cada núcleo. A impressão é de um jogo de espelhos envolvendo o público e o privado, o atual e o arcaico, o sacro e o profano.

A recorrência e a repetição recortam ínfimas partes de sistemas complexos através de aspectos da vivência dos artistas cênicos, que fazem do corpo o veículo para que a alma individual expresse a alma coletiva. Para que isso ocorra, o método estimula-os a encontrar “espaços”. E os espaços abertos em cena, sugeridos pela memória de cada ator, instigam no participante a abertura de espaços mentais e espirituais, indispensáveis ao seu ofício.

Os preparativos da viagem

“O chão do palco é nossa terra, a terra do teatro”, diz Stephan Stroux, ao se iniciarem os trabalhos.

Estando todos sentados em círculo, cada ator é convidado a tocar o chão com as mãos, batendo-as ritmadamente, tentado estabelecer contato com uma pessoa imaginária, dizendo que a ama ou pedindo que o deixe em paz. O ator termina tal “comunicação” e a outro é solicitado que interprete as batidas ritmicas como chamamento ou rejeição. É o princípio do diálogo entre atores, que responderão depois pela ação e seu desenvolvimento. O encenador anula a postura convencional do seu cargo: será um provocador apenas.

Na seqüência, alternam-se batidas no chão e no próprio corpo, que passa a funcionar como “caixa de ressonância”. Cresce o ritmo, os atores se levantam e tem início a dança. Em todos os workshops houve o crescendo das batidas e do movimento corporal. Por fim, dançando, os atores formam um círculo. A cada vez duas pessoas invadem o círculo, dançam e se retiram, ampliando a expressão emocional, instigadas pela música do grupo.

Há uma pausa após esse “aquecimento” e, em seguida, os atores voltam a sentar-se em círculo. Cada um canta sua canção pensando em uma pessoa imaginária com o mesmo propósito de chamamento ou de rejeição, sendo novamente sua intenção interpretada por outro ator. O procedimento é o mesmo verificado na ação anterior. Por fim, todos cantam juntos, produzindo ritmo com batidas de mãos e pés, dançando.

Desta maneira, pretende-se sinalizar aos atores caminhos para a busca de uma expressão própria, gerada pela memória sensual e afetiva. Os temas que se iniciam a partir desse momento descrevem um ciclo, abordando a infância, as utopias individuais e coletivas, a espiritualidade, a evocação dos ancestrais, a relação do homem com os quatro elementos da natureza. Têm importância, esses procedimentos iniciais, porque o desenrolar do processo afastará tanto quanto possível a elucubração e a ilustração da realidade, induzindo o ator a buscar dentro de si mesmo a visão de cada um dos temas, que assim se colocam nas jornadas diárias: 1º: Dia da Criança; 2º: Nostalgia da Terra; 3º: Água – Dia de Homens e Mulheres; 4º: Fogo – Dia de Guerra e de Sobrevivência; 5º: Ar – Dia da Religião e dos Ancestrais; 6º: Dia da Comida (Quem come quem?).

Em todos os estágios do processo a questão teatral é colocada em relevo. Não se trata de “curso de teatro” ou de ensino de técnicas interpretativas, mas de uma proposta cênica que pretende dar unidade a diferentes maneiras de entender e praticar teatro. Cada país tem sua cultura dramática. Será uma cultura mais ou menos desenvolvida, do ponto de vista europeu. Justamente esse ponto de vista é que termina sendo contestado no processo. É preciso respeitar as diferentes culturas e não as rotular segundo critérios apriorísticos. Porém, como representantes dessas diferentes culturas estarão se relacionando num mesmo espetáculo? De que maneira se poderia alcançar a pretendida unidade senão fazendo com que todos voltem a uma noção básica da ação dramática, que pode ser definida como “a expressão do Homem” (homem no sentido da espécie, evidentemente)?

Com essa perspectiva Stephan Stroux dirigiu os trabalhos. Solicitava dos atores um mergulho na memória pessoal, dela recuperando expectativas já abandonadas, sonhos e realidades conflitantes. E ao mergulhar na sua própria história, o ator faz emergir traços significativos da sua sociedade (o homem é produto do meio e reflete o meio). A relação afetiva do indivíduo com o elemento terra, por exemplo, é muito diferente em Maputo, onde o homem preserva a harmonia com a natureza, em face de Luanda, onde a questão da sobrevivência é calculada a cada minuto e a natureza se confunde com o lixo, ou de Cabo Verde, onde a formação vulcânica faz dueto com intermináveis secas, ou de São Paulo, onde a natureza foi engolida pelo concreto. De maneira que o sonho do homem está condicionado à realidade onde vive, subordinada à história e às condições sociopolíticas.

Haveria uma distorção formidável caso se desse espaço às elucubrações abstratas. E isso foi exaustivamente vigiado pelo diretor. As referências deviam ser sempre a coisas concretas, os objetos utilizados em cena tinham que ser autênticos. As relações é que remetem todas as coisas, tanto relatos de memória quanto objetos, ao universo poético. “Todas as coisas têm vida”, diz Stephan numa verdadeira profissão de fé, “mudam dentro do espetáculo. Mudam conforme a conotação, sem perder seus valores intrínsecos. Cada objeto tem sua história e a conta no espetáculo” (é claro que através das relações).

Vasculhando a memória

Os temas sofreram alterações de um para outro workshop, atendendo às diferentes realidades socioculturais dos núcleos. Permanecia, contudo, a atitude especulativa, assim desdobrando o universo temático:

Dia da Criança: Propõe a lembrança de um espaço da infância, um sítio onde o ator, quando criança, se refugiava para ter privacidade e sonhar. Ele deve encontrar nas áreas disponíveis para o trabalho um espaço de pulsação semelhante àquele da infância. Nesse espaço, faz um exercício introspectivo buscando recuperar os pensamentos, as utopias infantis, uma canção que o marcou nessa época e o jogo infantil preferido. Há um tempo de silêncio e reflexão em que cada ator, no sítio escolhido, procura mergulhar na própria memória. Findo o tempo, o grupo todo visita cada um dos participantes em seu respectivo espaço e ouve a narrativa daquela experiência particular. Ao cantar a canção da sua infância, os ouvintes o acompanham cantando, se a conhecerem. Dá-se então um fenômeno que reporta às origens do teatro, com o narrador e o coro. Por fim, o ator realiza um jogo infantil de que gosta, com a participação dos demais (com isso, o projeto documentou em vídeo mais de uma centena de jogos infantis).

A canção da infância será utilizada, em improvisações, como arma de defesa da criança, quando se sente ameaçada. Os pais brigam – dada a impossibilidade de comunicação entre eles gerada pela impotência frente a este ou aquele aspecto da vida comum -- e a criança se defende com sua canção. Isso provoca substancial alteração narrativa, o naturalismo do episódio doméstico se transforma em condensação poética.

Nostalgia da Terra: No final dos trabalhos do primeiro dia, é solicitado aos atores que, dia seguinte, tragam uma panela de metal (necessariamente usada, que tenha história) contendo terra. Não qualquer terra, mas um tipo de terra com o qual o ator tenha laços afetivos. As panelas são colocadas em linha reta, ao fundo do espaço cênico. Nesse dia, os atores falam de animais e plantas preferidos, realizando improvisações sobre tipos de violência contra a natureza e o ser humano. Depois, realiza-se também a visita do grupo a cada panela para que o ator que a trouxe fale da sua ligação com aquela terra. Com freqüência, a explanação traz importantes evocações de experiências de vida pessoal e coletiva. Faz-se uma roda, em seguida, e os atores cantam uma canção da terra. Duplas ou trios de atores vão para o centro do círculo dançando, enquanto os demais atiram terra das panelas aos seus pés. As panelas permanecem em linha reta no fundo do espaço cênico até o penúltimo dia do workshop, constituindo elemento concreto e poderoso por suas significâncias, tornando-se um dado importante ao desenvolvimento dos trabalhos.

Água – Dia de Homens e de Mulheres: Seria, também, o dia dos heróis e da fertilidade. Os atores procuram no espaço cênico um lugar que representará outro -- da sua realidade -- ligado a alegria. Nesse lugar, dá-se um ritual de fertilização da terra. O ator fala sobre um fato da sua vida em que a água teve importante participação. Depois, derrama água na mão e a esparge sobre a terra, dentro da panela. Isso acontece no lugar escolhido pelo ator (um lugar ligado à alegria) e todo o grupo o está visitando. Inicialmente, nesse dia evocavam-se ritos preparatórios da mulher para o casamento. Esse subtema, porém, foi descartado nos últimos workshops. Finalmente, Stephan anuncia o “milagre da fertilização”: em cada panela nascerá uma planta. Os atores deitam-se com a cara voltada para o chão, corpo estirado, tendo a panela junto dos pés. Nessa posição, olhos fechados, entoam uma melodia sem palavras. Num jogo teatral, Stephan coloca em cada panela uma câmara fotográfica: é a “planta” que os atores encontram ao abrir os olhos.

Fogo – Dia de Guerra e de Sobrevivência: Antes de se iniciarem os trabalhos, os atores escrevem em uma bandeira branca, estendida sobre o chão, nome de coisas que abominam (guerra, violência, mentira, hipocrisia, por exemplo). A bandeira, presa ao mastro, é hasteada em um ponto do espaço cênico, ali permanecendo até o fim dos trabalhos. Nesse dia, faz-se leitura de um texto poético de autor daquele país, nele buscando elementos temáticos para improvisações. O fogo representa não apenas destruição, também aconchego e proteção. Isso se celebrava, nos países africanos, com a canção angolana que diz: “Os meninos à volta da fogueira/ vão aprender coisas de sonho e de liberdade/ vão compreender como se ganha uma bandeira/ e vão saber o que custa a liberdade”, evocando as lutas tão recentes pela libertação dos seus países. No final do dia, realiza-se um cortejo, ao som de música que evoque o fogo, sendo levada à frente a bandeira das “malquerenças”. A bandeira é por fim queimada em meio à alegria geral, expressa em cantos e danças.

Ar – Dia da Religião e dos Ancestrais: As improvisações são canalizadas para temas que provoquem nos atores a emergência da memória mítica. Por isso, a argumentação e a maneira de conduzir os trabalhos variaram muito de um a outro país. Lida-se com o material de memória recolhido nos dias anteriores e textos poéticos em improvisações dramáticas. Os trabalhos têm início com toques de atabaque, começando calmo, como o sopro da brisa, culminando com a fúria da tempestade, evocando caos e pânico. Mas, o Dia do Ar está também ligado ao Carnaval, quando é possível ao homem do povo tornar-se rei, numa transgressão satírica ao poder. Os atores trazem fantasias e, no final do workshop têm 30 segundos cada um para revelar o caráter escolhido.

Dia da Comida (Quem Come Quem?): No segundo ou terceiro dia do workshop procedia-se ao sorteio do “amigo secreto”. Escrevia-se o nome de cada participante em um papel, que era dobrado várias vezes. Misturadas essas dobraduras, cada participante tirava uma. Era o nome do seu amigo secreto. Esse nome deveria continuar absolutamente secreto até o Dia da Comida, que encerrava o workshop, ligando-o à divisa antropofágica.

Para esse dia, cada ator preparava uma comida (se possível na mesma panela em que trouxera a terra) a ser oferecida ao seu amigo secreto. Mas, ao prepará-la, devia criar uma ficção, assumir um personagem e propor ao amigo secreto, no momento de oferecer a comida, um jogo dramático. Assim, a comida oferecida tinha um propósito – fosse o de agradar, seduzir; fosse o de repudiar, agredir. E o jogo exige do ator reflexos rápidos. Competia ao convidado entender rapidamente o que lhe era proposto. O ocasional anfitrião estava atento às reações do outro. Estabelecia-se o clima de tensões dramáticas que resultou em performances não raro muito ricas, às vezes transcendendo ao meramente descritivo de uma realidade, para criar sua própria realidade poética.

O Grande Teatro do Mundo

O mundo é sempre uma “representação”, vivemos no nosso dia-a-dia um grande teatro. Essa verdade escapa quase sempre aos fazedores de teatro, que recorrem às abstrações, às “emoções convencionais”, ao receituário emotivo e estético. Mas o drama verdadeiro, ritualístico, denunciador da condição humana no mundo contemporâneo, dominado por deuses materialistas, está no depoimento da atriz de Moçambique, tão jovem ainda, mas que teve tempo de presenciar terrível massacre em uma estação ferroviária; ou no depoimento de um ator de Cabo Verde – país onde as pessoas são forçadas ao desterro para alimentar a família – que colocou na panela, entre outras terras, a do cemitério onde foi enterrado seu pai, que tão pouco conviveu com ele, forçado a obter o sustento da família em outras terras; ou dos atores de Angola, reprimindo seus sonhos, suas fantasias pessoais, porque há sempre “um perigo na esquina” e ninguém pode descuidar ou devanear numa terra em que o sonho é proibido; ou de atores de São Paulo, que transformam a competição cotidiana numa angustiante disputa do poder representado num prato de salada. Este é o Grande Teatro do mundo lusófono que os workshops da Viagem ao Centro do Círculo evidenciaram. Não há salvação para o homem, senão na compreensão de si mesmo, que possibilita a compreensão do Outro.

Em todos os núcleos o Dia da Comida foi o mais rico, teatralmente. Houve ocasiões que o jantar se transformou em pequenas peças de fina poesia. Nessa observação, registre-se, está o elogio ao processo de Stephan Stroux. No final de uma semana de trabalho, percebia-se claramente o quanto os atores tinham assimilado seus ensinamentos. E, mais ainda, como através das sugestões do encenador os atores deixaram aflorar conteúdos míticos da sua realidade. As sugestões se convertiam em atitudes nas cenas improvisadas, nos relatos íntimos, no constante revolver da memória pessoal e coletiva.

Esses horizontes temáticos, pesquisados na própria vivência do ator, somados à obediência das leis cênicas, ao valor dado aos espaços (todos os espaços possíveis estão no palco), à naturalidade da expressão teatral (poética e não realista) resultavam no repertório criativo das improvisações desse último dia.

Mas, ao longo do workshop, o teatro revela sua pujança transformadora. O chão não é o mesmo do primeiro ao último dia. A terra jogada sobre o cimento alisado ou as tábuas do piso, transformam o chão. Ele deixa de ser aquilo que é, materialmente, para se transformar numa metáfora. A panela, dia a dia ganha novos significados. A percepção dessa mudança vai atuando no corpo e na alma dos atores que passam, de modo ao mesmo tempo racional e emocionado, a buscar uma compreensão de si mesmos e do mundo em que vivem; a valorizarem a relação com o Outro e, nesse amontoado anárquico de informações, a questionar o sentido superior dessa fatalidade humana, que é viver.

A câmara descartável deixada nas panelas, num faz-de-conta que é planta, contém filme com 27 poses. O ator deve fotografar coisas que lhe são importantes no dia a dia, coisas da sua cidade, ou do seu bairro, ou da sua casa, assim como pessoas, animais e plantas do seu universo pessoal. Revelado o filme, ele escolhe dez das vinte e sete fotos e as entrega para a documentação do projeto.

As imagens de espaços íntimos, de objetos pessoais ou caseiros, das atividades humanas, de paisagens etc., registradas pelos atores e atrizes participantes do workshop, criam no conjunto uma visão íntima do cotidiano de cada cidade -- por extensão, de cada país. Cruzam-se como fios de uma rede, essas imagens, com os sons gravados na fita cassete, também entregue aos atores, que revelam sons locais, o gosto musical e todo o temário que emociona a respectiva comunidade.

Ao fazer os registros sonoros e visuais o ator está completamente envolvido pela atmosfera do workshop, que lhe estimula a memória afetiva. Dessa maneira, os trabalhos prospectivos transbordam a sala de ensaios, invadem a privacidade dos atores. Os limites entre o público e o privado se esgarçam e, quase sempre, os atores começam a alimentar a própria imaginação com sua experiência de vida, nas improvisações. Pudores são desmistificados e a verdade de cada um passa a aparecer de modo perceptível. O Grande Teatro do Mundo ganha força, se ilumina e se intensifica.

Documentos da vida lusófona

O conjunto dos documentos recolhidos nos workshops fala de diversas realidades culturais, evidenciando pontos de semelhança, ou identidade, como pontos de profunda divergência entre elas. A própria língua que as une tem validade relativa. Não apenas pelos dissonantes sotaques nacionais e regionais, mas porque em alguns países o português convive com idiomas nacionais, tantos quantas etnias existirem no país – em Moçambique, por exemplo, existem trinta e seis idiomas nacionais.

Por documentos, entenda-se não apenas as fotografias, os sons gravados em cassetes e os textos que os atores também deviam providenciar (escritos por eles mesmos ou escolhidos entre os de sua preferência), mas todo o registro dos trabalhos feito em vídeo por Beatrice Babin.

São centenas de horas de gravação captando o comportamento dos integrantes de cada núcleo, os depoimentos, as improvisações, os cantos, as danças e os jogos infantis. Uma coletânea eloqüente da vida social, econômica e afetiva dos povos abordados, mas também um painel dos diferentes modos criativos, refletindo as maneiras particulares de cada povo expressar sua realidade.

A riqueza do processo desencadeado pela Viagem ao Centro do Círculo, na primeira fase do projeto, ultrapassa os limites específicos do teatro e pode alimentar outros campos do conhecimento. Para este trabalho, todavia, interessa exclusivamente o que tem relação direta com o teatro.

O difícil, na verdade, é definir quais são os limites específicos do teatro. Todo o conhecimento, afinal, seja de que campo for, interessa ao teatro. Não se pode pensar uma criação dramática indiferente a qualquer contextualização. O teatro é alimentado da vida e do saber, devolvendo o alimento à vida e ampliando o saber. Uma arte que bebe de todas as fontes e devora todo tipo de informação que encontra pela frente. Por isso mesmo, uma arte sempre vinculada à realidade social. Consequentemente, a criação dramática vital não se prende a abstrações, mas a realidades.

O conhecimento da realidade, no teatro, estabelece a horizontalidade da obra; a arte está, por fim, na capacidade do artista em verticalizar esse conhecimento

O conjunto dos documentos recolhidos expressa essas realidades e sua finalidade, dentro do projeto, é estabelecer diálogo entre os vários grupos participantes.

O Espetáculo

Nos workshops que antecederam aos ensaios do espetáculo “Quem Come Quem?”, em Coimbra, esse acervo apoiou os atores na busca de memórias e na relação com os outros. A idéia era de que cada ator se contaminasse das realidades do universo lusófono, propiciando assim a criação de obra teatral que o reflita em sua complexidade.

“Quem Come Quem?” foi o resultado estético da aventura, uma breve visão cênica da Viagem pioneira pela comédia humana de três continentes. O que se viu em cena no Teatro Gil Vicente, de Coimbra, em junho de 2000, não foram devaneios nem abstrações e sim a tentativa de transpor ao território poético a realidade dos homens que habitam o contraditório universo lusófono. Fugindo à dissertação histórica e aos envolventes acenos do pitoresco, observa amorosamente a alma humana.

O início do espetáculo refere-se à viagem, o percurso dos homens em busca da liberdade ou de “vida melhor”. Dá-se o encontro, o reconhecimento mútuo e o mergulho às raízes étnicas, ao inconsciente coletivo, para de lá emergirem os dramas pessoais e a memória de vida dos atores. Tudo o que acontece em cena tem como ponto de partida as realidades vivenciadas. Poetas lusófonos comentam ou fazem contraponto com sua ficção profética às referências do real. Isto significa que os atores não são meros repetidores de um texto alheio: vivem em cena histórias por eles oferecidas ao curioso alemão Stephan Stroux, que os dirige tentando unir as diferentes fábulas, dar unidade ao aparentemente discrepante, de modo a criar pela síntese e por metáforas a visão de tudo o que encontrou ao longo da viagem.

Assim, com memórias entretecidas de canto e dança, o espetáculo apresentou o vigor, a energia exuberante, o rico imaginário do mundo lusófono.

Festa em Berlim

O encontro Wer Frisst Wen, realizado em Berlim, com participação de músicos e cantores brasileiros e portugueses, grupos de dança de Moçambique, artistas e intelectuais dos países lusófonos e da Alemanha, propôs a reflexão sobre as diferenças étnicas, sociais e religiosas, que a globalização trouxe ao primeiro plano na História do mundo contemporâneo. O convívio com as diferenças torna-se agora uma das condições básicas para a própria sobrevivência humana.

O exemplo do processo criador de “Quem Come Quem” (cujo espetáculo, na ocasião, foi apresentado em vídeo), transcende ao fenômeno estritamente teatral para indicar formas de aproximação de diferentes culturas. O debate abordou a questão do “diferente” na própria Alemanha, quer entre o povo das Alemanhas Oriental e Ocidental, após a queda do Muro de Berlim, quer entre o cidadão alemão e as colônias de estrangeiros radicadas no país, especialmente a dos turcos. E a melhor maneira de estabelecer convívio harmônico e respeitoso é o desarmamento do espírito, o interesse pela história do Outro. Coisas em que foi baseado o processo criativo do espetáculo e tornaram-se o seu fundamento.

Com essa idéia generosa de aproximação, reconhecimento e celebração, a Viagem ao Centro do Círculo continua.


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