Hacer teatro hoy


ONDE ESTÁ A CRISE?
Por Helder Costa

Por aqui, neste velho Continente chamado Europa, é muito habitual falar-se da crise do teatro.

É bom falar-se disso. Quer dizer que a gente do teatro não está cega nem esconde a cabeça na areia como a avestruz.

O que se esquece frequentemente é que crise significa um ponto de ruptura de uma falsa estabilidade. Digamos que é um facto inevitável para agitar águas pantanosas. Funciona como uma pedrada no charco.

Essa alteração da paz podre pode ser para melhor ou para pior, precisamente como se passa nas doenças dos pobres mortais, na condução dos países ou na especulação financeira das bolsas.

É nossa responsabilidade que essa crise se resolva a nosso favor.

Tentemos um leve diagnóstico.

1. Há menos público
Parece um dado indiscutível que há menor afluência de público ao teatro.
Para isso há motivos evidentes.

Primeiro, por razões de ordem económica e culturais, as classes mais baixas deixaram de frequentar o teatro (se alguma vez o frequentaram, exceptuando momentos de especial perturbação social em que o teatro se ligava abertamente a uma acção política – lutas contra a censura, greves, derrotas de ditaduras como o 25 de Abril em Portugal, o fim do franquismo em Espanha, o pós-guerra de 45 em França, etc.).

A pequena e média burguesia, habituais frequentadoras de espectáculos, por factores civilizacionais recentes, preferem consumir tempo e dinheiro em restaurantes e longas conversas antes de irem tomar a bebida da praxe à discoteca ou ao bar da moda.

(O que, diga-se de passagem, pode ser bastante agradável).

Esta deserção das salas é consequência directa da desideologização e das teses que elaboraram “o fim da História” e a globalização. Globalização ou neo-liberalismo significam o oposto do compromisso colectivo e social, e criam inevitavelmente o individualismo mais exacerbado. Assente na fruição do momento presente, único e na competição feroz para o sucesso do belo estereotipado.

Por isso, o culto do culinarismo, o desfile de moda transformado em fenómeno artístico social, a invasão da imprensa cor de rosa, os concursos televisivos criadores dos novos heróis populares saídos da mediocridade da sub-cultura.

2. A política oficial de cultura
Qual é a resposta em geral dos governos contra este estado de coisas?

Não estimula, não desenvolve, e boicota os esforços que tentam dar vida e energia à acção cultural.

Na Europa, os Teatros Nacionais e algumas companhias que cultivam o teatro “oficioso” foram transformadas em templos de produções caríssimas, todas iguais entre si.

O faraonismo e a sumptuosidade substituíram a imaginação, o risco e a pureza do acto teatral.

Como no século passado, as estreias voltaram a ser um desfile de vaidades para exibir sorrisos, vestidos, penteados, contar intrigas, conquistar favores políticos ou económicos, talvez sacar o dote de ricas herdeiras, e tudo o mais que a ocasião proporcionar.

Dizem que tudo isto é para prestigiar o teatro. Claro que é falso.

Do que se trata é de desvirtuar e desvirilizar o teatro, transformando-o num arremedo premonitório da decadência da ópera.

É essa mesma gente que diz que não gosta de teatro, e que “teatro só em Londres”.

3. A comunicação com o público
Qual é o papel da imprensa e dos media na relação com o público? Normalmente, é nula.

E, ainda por cima, existe um sinal péssimo nessa comunicação essencial que é dado pelo labor de alguns críticos.

Não falo de Crítica, porque não se trata de algo como Religião, Ciência, Filosofia...

Não, a Crítica não existe. Existem críticos, seres humanos capazes do melhor e do pior, falíveis e, infelizmente cada vez mais longe da ideia que a Crítica seria a tentativa de aprender e propagar o melhor do que se conhece e pensa no mundo.

Claro que essa decadência cultural e ética dos críticos tem a ver com as regras económicas da concorrência. Os Estados Unidos ensinaram-nos a imaginar que busines is show business; é natural que esse business seja protegido, e para isso os promotores têm que pagar aos propagandistas, vulgo críticos.

E é assim que se chega ao ridículo de jovens críticos quererem imitar o mítico crítico de Nova York que conseguia destruir uma peça porque a arrasava nos seus escritos!

Claro que essa prática acabou por criar a grande crise do teatro em Nova York. É evidente que não me estou a referir aos grandes musicais com as salas cheias de turistas, nem às peças que são êxito porque integram as grandes vedetas de Hollywood ou da CBS.

Aliás este processo foi levado ao extremo de se criarem êxitos ou fracassos de peças e filmes com meses de antecedência das estreias!

Este, é um elo muito fraco para o prestígio e divulgação do teatro. Os media têm de ser uma correia de transmissão entre o teatro e o público.

É uma luta essencial a travar.

4. Os criadores teatrais
Falemos agora de um problema mais grave.

É que muitos criadores teatrais também contribuíram para o afastamento do público.

Em muitos casos acreditaram na pseudo-promoção que o poder fez do teatro para belos e requintados espíritos. E, evidentemente, aderiram à campanha ideológica contra o teatro popular, acessível, comunicativo, universal.

Em nome, imagine-se, do anti-maniqueísmo! Como se o teatro do bom-senso não fosse o teatro mais maniqueísta do mundo!

Depois, cultiva-se a estética formalista e gratuita, e tentou-se convencer o público que esses actos tinham poética e encantamento! Claro que o público não acreditou, e virou as costas às salas.

Em seguida, transformou-se o acto teatral em judiciosas e longas representações poeirentas e académicas.

Era a chegada da erudição balofa mascarada de “grande cultura”. E aí começou o “teatro da intimidação” - quem não gostasse, era inculto e estúpido.

O público percebeu: bateu palmas, disse que tinha gostado muito, e nunca mais voltou.

Esta linha de trabalho é a mesma que, criticando sempre o teatro popular, entra em desespero e produz o populismo mais desbragado, reaccionário e pornográfico, porque “querem chegar ao povo, e o povo gosta é daquilo”.

Enfim! Desvarios e inconsequências do oportunismo burguês!

A História da Humanidade sempre nos ensinou que o alto nível vivia de mãos dadas com o lumpen e a corrupção moral.

Outro sinal contemporâneo da crise do criador tem a ver com os repertórios.

Em vez de se contar uma história, apresentam-se textos e retalhos de frases díspares e inconsequentes, exercícios mais próprios de investigação filológica ou de experimentalismo linguístico, e nunca de um acto de comunicação.

Aliás, como o público se transformou no monstro terrível que pode significar a massa popular, também se erigiu em moda a incomunicabilidade. E o passo seguinte e lógico foi cultivar a distância em relação ao espectador e fazer renascer o actor-vedeta, inacessível, caduco, e sociologicamente decrépito.

É evidente que toda esta prática se destina a esconder a terrível verdade destas marionetes reaccionárias : a cobardia cívica e política, a abdicação do dever de intervenção do intelectual e artista, o consequente impasse na criação e o estafado recurso a imitações do que se faz nas grandes metrópoles imperialistas e a colagem apressada a toda e qualquer moda de importação.

Tudo isto conduz a um único objectivo: transformar o teatro num objecto estranho na sociedade, até terminar em peça de museu.

Há respostas possíveis?

Penso que sim.

Como criadores, nunca poderemos abdicar do direito à experiência e ao risco.

Como artistas, a nossa acção é indissociável do culto da poética, do belo, e da procura incessante da emoção.

Como agentes culturais, somos responsáveis pela divulgação do longo caminho que a Humanidade tem percorrido na procura do Bem e do Progresso, e teremos de ser firmes opositores das ideias reaccionárias e do achincalhamento físico, mental e moral do ser humano.

Como pessoa de teatro tento criar um teatro de afectividade, companheiro e confidente fraterno do público.

Para que o espectador perceba que nós não estamos num pedestal inacessível, mas sim de mãos dadas numa caminhada comum.

 

Enviar e-mail Ingrese a nuestro sitio web